A ARTE POÉTICA
Talvez choque, de alguma forma, muitos dos nossos poetas, pela frieza com que trato o uso e o significado da palavra poética. Talvez seja acusado de “secura de linguagem”, de frieza, de ausência de sentimentos, pelo rigor construtivo com que talho uma obra. Talvez seja acusado de que não acredito em inspiração. E não! Não acredito em inspiração! A inspiração não existe! Não há musas nem deuses gregos ou de qualquer outro lugar terreno ou celestial, inventado ou por inventar, que inspire o homem a escrever o que quer que seja.
O homem, ao criar, põe no que cria engenho e arte sem estar sujeito a qualquer entidade inspiradora. Simplesmente, tudo é arte. Tudo se faz com arte. É-se mais perfeito ou menos perfeito consoante o empenho que se põe no aperfeiçoamento do que se faz. E fazer poesia também é arte.
Não pretendo, nesta obra, colocar em “cheque” ou em “causa” toda a tradição poética anterior. Até porque, fazê-lo, seria renegar centenas de poemas que escrevi e que guardo em gavetas à espera de maior perfeição. Um dia, quando os burilar e colocar neles arte, dá-los-ei à luz se ainda cá estiver.
Talvez me acusem – quem se dignar ler livros meus como o "O Meditações sobre a palavra", o "Um arbusto no olhar" ou o "O retorno ao princípio" – que sou um poeta sem alma, um poeta que faz “poemas frios, racionalistas, medidos a fita métrica e sem alma nem coração”. Talvez seja acusado de que o meu edifício de vocábulos seja construído sob o rigor da fita métrica, do compasso e do esquadro. Talvez seja! Mas esta minha inquietação formal, este meu uso e abuso em burilar a palavra com arte, fazendo com ela, na construção do poema, um trabalho intelectual, consome-me dias e noites num aperfeiçoamento constante e num rigoroso sentido de busca.
Rejeito liminarmente o epíteto de “não-sentimental”. Até porque, em determinada fase da minha vida (e ainda hoje nos contos que escrevo o faço) empreguei a alma naquilo que fiz. Também não sou o “engenheiro” da palavra que pretende renegar todo o resto que até aqui escreveu. Simplesmente pretendo demonstrar que, com uma “poesia pensada, racional, empregando uma linguagem elíptica e concisa” também posso ser, querendo, anti-sentimental e anti-lírico.
Há que reconhecer que se pode e deve dar novo uso à palavra poética. Um uso não-lírico, onde o “artefacto rigoroso da busca” e da construção e emprego da palavra no todo do edifício poético, dê verdadeiro sentido intelectual à obra construída.
Não posso deixar de admirar, e dessa admiração nasceu o meu tributo ao poeta do rigor absoluto – António Ramos Rosa, com um livro publicado em 2012, a poesia concreta pelo rigor, pela falta de lirismo, pela ausência do eu, e pela ausência de encantamento a favor do raciocínio.
Mas rejeito esse outro atributo que os concretistas punham na exigência da sua poesia – “a ausência de imagens abstractas”. Aqui defendo o expressionismo. Entre este e o concretismo deve haver, e é possível haver, uma simbiose tal que, da interiorização da criação artística com recurso à imagística, deve ser projectada, com abstracção do lirismo e emocional mas com arte racional, a criação do edifício poético.
Muitos argumentarão, pela frigidez que denoto em muitos dos meus escritos, que não pertenço a um país de poetas. Mas eu sou nado e vivo e hei-de ser sepultado neste país de poetas à beira mar plantado, que a outro me nego pertencer. Simplesmente, quando digo que a poesia deve ser feira com arte, pretendo demonstrar que neste engenho e arte de poetar, o sonho, a alucinação, o lúdico e o jogo das palavras, quando belas, podem (e devem) ser trabalhadas com arte, raciocínio e lógica como o engenheiro que levanta a casa fazendo uso do compasso, da régua, do esquadro e do cálculo a partir do sonho que a criou no estirador do seu estúdio.
Ao longo da vida escrevi centenas de poemas que fui sacrificando, sem os dar a conhecer aos leitores, sempre em busca da maior perfeição. E isto, porque gosto da geometria das palavras, mesmo sabendo que não é o que mais cativa os leitores da poesia. Prefere-se (quem a escreve e quem lê a poesia) o lirismo ultrapassado, o fingimento do “poeta fingidor”, pela dificuldade de despir o poema da presença do eu poético e da roupagem romântica e das velhas “cadências sentimentais”. Negam-se a aceitar o rigor da palavra no uso da linguagem poética, simplesmente porque esta forma de escrever não é o mais fácil em poesia nem o que torna a obra mais vendável, se é que ainda alguém, nos dias de hoje (e de ontem) alguma vez conseguiu viver da poesia que escreveu.
Não pretendo fazer ruir os edifícios poéticos que por aí proliferam, uns construídos e outros em fase de construção, no seu excesso de lirismo, mas tão-somente demonstrar que o acto de escrever poesia deve ser um trabalho de constante catarse e depuração. Controlar o fenómeno poético é o que eu proponho com as obras que escrevo, se bem que outras leituras dela se possam fazer e diversas conclusões, da minha obra, se possam tirar.
Fazer poesia, é: reflectir, organizar, construir e integrar. Duma forma lógica e justa, sonhando, mas materializando e intelectualizando de forma racional.
© Alvaro Giesta (poesia e crítica literária)
Não escrevo segundo as normas do novo acordo ortográfico
Publicado em 21/05/2014