A crise necessária para a construção do indivíduo, no livro O Estigma, de Mário de Méroe
Por Alexandra Vieira de Almeida
Doutora em Literatura Comparada
O Estigma, que tem como subtítulo Desvendando o segredo da lança que profanou o corpo de Jesus pretende desenvolver ao longo da obra a construção do indivíduo a partir de um conflito inicial que ocorre logo no primeiro capítulo. Não é por menos, as duas primeiras partes têm como título o nome de pessoas, começando pela personagem Regina, uma médica bem-sucedida que nas suas horas mais plenas faz caridade. O outro capítulo leva o nome de Marcos, a personagem principal desta história bem intrincada que também como sua amada Regina tem sucesso na sua carreira como advogado e realiza atos de puro benefício ao próximo. Mas no meio de tanto equilíbrio, surge a crise, o desequilíbrio necessário para a criação de uma essência, o ser. Por que a personagem Regina aparece logo na primeira parte e não o personagem principal? Há uma estratégia do narrador que é mostrar que mesmo na construção desta individualidade, há a lei da complementariedade, o dois. É preciso haver o diálogo para a recriação do ser. Recriação esta que requer a linguagem como formação da psique.
O livro é dividido em 33 capítulos, um ato narrativo simbólico que demonstra por aqui não o diálogo entre indivíduos, mas entre tradições, o texto bíblico, de conteúdo religioso e a literariedade na recondução da ambientalização bíblica no jogo ficcional deste livro bem arquitetado. As 33 partes apontam para o amadurecimento da consciência como na idade de morte e ressurreição de Jesus Cristo que passa por um périplo de sofrimento e redenção da humanidade. Redimir é a palavra-chave deste livro, pois a crise inaugural de Marcos exatamente no aniversário de 33 anos é a dor de toda humanidade, como metonímia do universal, Marcos figurativamente sofre uma dor na região do corpo onde numa vida passada ele teria perfurado com uma lança na crucificação o flanco direito de Jesus.
Maximus era seu nome no passado, um legionário que obedece a uma ordem para cumprir um desígnio que feria sua individualidade. Como o externo modifica o princípio humano. Como o status quo desafia nossa essência é o que o narrador de forma reflexiva revela para os leitores. A aparente ordem do poder só mostra uma máscara superficial. Por trás da ordem estabelecida, encontram-se a irracionalidade e a desordem beirando ao caos daquilo que é genérico e esconde nossa verdadeira qualidade.
O literário bem engendrado por Mário de Méroe é resgatar o humano nas personagens envolvidas em um fato em outra época. Várias soluções são apresentadas, o amor do casal Marcos e Regina, a terapia de vidas passadas, o aparecimento de um menino misterioso que conduzirá Marcos para seu passado no Monte Gólgota, onde ele terá uma visão narrativa de tudo que o levou para a crise atual. A rememoração de fatos interligados na época de Cristo leva a uma recondução na vida do indivíduo. O passado é visto como solução de uma crise da personagem que passa por sofrimentos, não só físicos, mas morais, pois várias personagens que circulam em torno dele reagem agressivamente com relação a ele, sem um motivo aparente.
O término de uma crise simbólica na vida de Marcos e das pessoas envolvidas em torno dele leva o leitor a reafirmar sua qualidade de humanidade, o conflito necessário é de todos nós que passamos por inúmeras peripécias até a reconstrução de uma consciência madura, não afetada pelos ditames do poder vigente. O livro todo é construído como um mistério, como na liturgia, que apresenta seu lado mais cotidiano entremeado pelo simbolismo da fé. A literatura de Mário de Méroe acorda este mistério no ser. Marcos parte do desconhecido para o conhecido. Desvendar os enigmas sempre foi a questão insistente do ser, que busca sair do superficial, da aparência, para descortinar o véu da memória, ultrapassá-la pela chama da interioridade. O indivíduo cumpre o ritual imemorial do ser que se esconde nas camadas complexas da linguagem. O domínio que o autor tem da língua é magistral em sua narrativa que mostra um conhecimento aguçado da tradição, dos textos antigos, conhecimentos vários que se cruzam nas malhas do texto poético que se define aqui neste livro rico e bem estruturado como costura de tecidos vários e refinados para o deleite do leitor inteligente.
O último capítulo, o 33, “A maldição extinta” é o término de uma dor universal, os enigmas são solucionados, as dores são dissolvidas, o mistério é trazer para perto do leitor uma recondução para a vida, o constructo da chave para o indivíduo, a partir de uma crise necessária, o que é mais humano é resgatado no diálogo pleno entre signo e sujeito, entre os próprios sujeitos, entre conhecimentos diversos e o que é mais livre de tudo, no interior de cada pessoa, tanto pelo lado do narrador como de quem lê esta história metaforicamente bem elaborada.
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