A LUZ DAS DIVAGAÇÕES
JAX
Vista à distância, a luz dos corredores dos edifícios possui algo de vazio, misterioso e melancólico. Mesmo quando se observa neles ocasional movimento de pessoas. A luz parece meio mortiça, como a sugerir que a vida ali se encontra em estado de suspensão, num ambiente convidativo à indagação, à nostalgia, à cata da lembrança perdida no passado.
A luz desses corredores difere da que provém dos apartamentos e oferece mosaico variado de lares, cada qual com sua história própria, ainda que não guarde relação com a que imagina a mente a contemplá-los. A menina pode estar feliz a brincar com as bonecas no seu quarto, como aparenta, ou, ao revés, descontente porque seus pais não a levaram a divertir-se muito mais com sua melhor amiga. O casal que assiste à televisão pode parecer bem interessado em seu programa, mas nada garante que não preferiria estar num cinema ou numa discoteca. O tipo de aparência idosa que entra e sai sem parar naquela sala deve andar aflito à procura de algo ou estar gagá simplesmente.
Tiago gostava, por vezes, de mirar essas diferentes luzes e pôr-se a divagar a respeito do que via, deixando correr solta sua imaginação. Os apartamentos atraíam menos sua atenção, contudo. Mal começava a observá-los, sua consciência o advertia do quanto era indelicado imiscuir-se na privacidade alheia. Como ele mesmo prezava sua própria privacidade, prontamente ia buscar outro foco de atenção.
Do que gostava mesmo era olhar aqueles corredores de iluminação mais frágil, que lhe traziam alguma vaga lembrança da terna infância, no primeiro apartamento em que residira na rua Antônio Basílio, na sua querida Tijuca. Que luz seria aquela que teimava em vir a reentrar na sua memória? Por mais que se esforçasse, acabava com a sensação de que seria a imagem fugidia, não de um corredor de edifício vizinho ao seu (já que, naquele tempo distante, seu prédio provavelmente era o único nas proximidades), mas o de alguma área de serviço de outro apartamento, quem sabe do mesmo andar.
Se bem distante e fugidia aquela luz específica, qualquer outra em que batesse os olhos quando caminhava, ou enquanto aguardava a luz verde do semáforo para seguir adiante com seu fusca, comumente o levava a divagar. Dependendo do estado de espírito naquele momento exato, a divagação poderia ser alegre ou triste em torno de alguém ou de acontecimento dos milhares que povoavam sua memória. Lembranças desse tipo eram fáceis de reconstruir e transcorriam mais céleres do que um filme de curta metragem.
Complexa, lenta e quase sempre inconclusiva mostrava-se, por outro lado, a divagação acerca de seres ou sentimentos menos precisos, que a memória não conseguia resgatar. Em tais momentos, tudo se passava como se o vazio, o mistério e a melancolia sugeridos pela luz dos corredores correspondessem às ocasionais angústias do jovem Tiago. A palidez da luminosidade percebida estaria em relação direta com a falta de clareza quanto às soluções para problemas aflitivos como a pobreza e a degradação ambiental, particularmente no caso de um jovem cheio de ideais difíceis de virem a concretizar-se. A luz também seria tênue demasiado para resolver as ansiedades sobre o amor. Certa vez, ficou-lhe a sensação de haver visto passar por um daqueles corredores a mesma menina de vestido cor de rosa contemplada da janela em sua infância. Seria fruto da imaginação ou de fato ele vira uma menina assim trajada por ali circular casualmente? Isso não importava, na verdade. Como poderia a imagem perdida no passado ter serventia para suas expectativas no presente?
Pois é, as divagações têm limites. Só o tempo foi ensinando o jovem Tiago a divagar menos e a viver mais. Vira e mexe, no entanto, eis que a luz dos corredores ainda vem provocar a velha mania de indagar-se. Sem vazios, nem melancolias, aparentemente há muito superados. Restam, não obstante, os inesgotáveis mistérios dessa vida, sobre os quais a tosca e obstinada luz das divagações insistirá em projetar-se, em uníssono com a que provém daqueles indecifráveis corredores.
Julho 2017