A porta principal da casa da chácara estava entreaberta...parecia vazia. Empurrei-a , lentamente, uma sala ampla, pouco iluminada, mobília estilo colonial , madeira escura, se fez presente. Grandes almofadas espalhadas pelo chão, esquecidas, largadas ao acaso.
Passo a passo fui ganhando seu interior e descobrindo seus espaços. À minha direita um quarto espaçoso, arejado, porém , muito simples. Também com pouca mobília.
Num dos cantos, uma cama, no outro, um pequeno guarda-roupa e, no outro, um móvel grande com várias gavetas, em cima deste, muitos papéis, desenhos, lápis, tintas, pincéis... enfim tudo desordenadamente deixado naquele lugar.
Ele estava lá sozinho, solitário, perdido nos seus pensamentos, nos seus devaneios.
Não suportei a cena e saí, fazendo o possível para não ser percebida...
À minha frente estava o banheiro, também grande e arejado, em seguida a cozinha e outro quarto... não sei bem de quem, sei que tinha dono.
Quando ele se deu conta da minha presença na casa, foi logo falando:
- Olá , você aqui?
Não adiantou sair sorrateiramente do seu quarto, ele sentiu minha presença, ele me descobriu. Novamente fiquei sem saber o que dizer. O que eu poderia dizer.
Voltei ao seu quarto e lá estava ele. Sorriu para mim seus olhos azuis brilharam, não disse uma palavra sequer, mas seu sorriso refletiu toda sua vida.
Entrei, fiquei por alguns segundos , parada ,sem saber o que dizer, sem saber qual o motivo de estar ali. Ele compreendeu meu vazio...
- Você veio me visitar?
Graças a Deus..pensei... laconicamente, e respondi:
- É verdade! Vim lhe visitar.
- Então, disse ele, vou me levantar e lhe mostrar minhas coisas.
Levantou-se da cama, foi em direção ao móvel grande com muitas gavetas começando a tirar coisas, segundo ele, importantes na sua vida, narrando a utilidade de cada uma delas.
À medida que falava os objetos começaram a ter um sentido, um significado que só cabia na sua vida, só fazia sentido na sua história.
Não sei bem que objetos eram, eram tantos...mas , sei que em cada um deles, ele estava contido. Aprisionado!
Ele , novamente, percebendo minha perplexidade, veio ao meu socorro.
- Você viu minha chácara?
- Não,!respondi.
- Venha, puxando me pelas mãos, vou lhe mostrar.
Saímos de dentro da casa, sua mãe no pomar, nos observava. Percebeu que o filho estava feliz com minha visita tão esperada.
Começou a descrever o espaço do terreno.
- Ali onde está minha mãe é o pomar, temos muitas árvores frutíferas, podo os galhos, limpo o mato cuido para que todas as árvores fiquem verdinhas.Do outro lado, é a horta, mas não está , lá esta coisa , minha mãe não me deixa cuidar da horta, só ela mexe.
- Você está vendo isto?
Respondi fracamente...
- Sim, uma garagem.
Ele riu gostosamente...
- Mais ou menos é uma garagem improvisada, fez questão de frisar, venha ver.
Retirou de uma só vez a lona que estava cobrindo o carro , muito ansioso começou a me descrever o carro dizendo que era um modelo esporte anos 80 e estava ali para consertar a muito tempo.
Continuou ele:
- Eu e meu irmão estamos cuidando de tudo.Como você vê , faz um tempão que não trabalho nele, vou começar agora.
Sua mãe que estava na horta, rapidamente veio para dissuadi-lo desta idéia...
- Filho agora não é hora de consertar o carro, você tem visita não seja mal- educado, tem tempo para fazer isso, e depois, cadê seu irmão, vocês combinaram de fazer juntos, lembra-se?
- É . respondeu ele sem muita convicção.
Não tive muito tempo para ver que carro era, o modelo era esporte não me lembro bem, mas a cor parecia vermelha, estava muito empoeirado, esquecido naquele lugar..
Seu grande projeto , trabalhando nele há anos, dizia que tão logo ficasse todo arrumado, iria sair por aí em grande velocidade, conseguir uma namorada... olhar malicioso, sorriso maroto nos lábios.... mas isto somente quando o irmão tivesse tempo.
Sorria....estava tão feliz por realizar seu sonho, mesmo que somente em seu pensamento.
Fiquei ali parada...sem palavras. Não tinha o que dizer o cenário construído por ele era perfeito.
- Venha, disse-me ele, vamos voltar para o meu quarto, quero que veja melhor, meus desenhos.
Entramos na casa , o silencio no seu interior , era amedrontador . Fomos direto para seu quarto. No meio daquela desordem encontrou uma gravura.
- Veja, o que é esta gravura para você.
- Bem, é uma chácara, respondi..
Sorriu para mim e seus olhos azuis brilhavam.
- É, é a minha chácara. Veja o pomar, a horta, as árvores que só dão flores, e minha casa. Ah. Ia me esquecendo , a garagem improvisada, sorriu, também tem meus cachorros O pastor é bravo, o outro é vira-lata é manso, mas se você estiver comigo, não precisa ficar com medo, eles não farão nada.
Pensei...que alívio porque tenho muito medo de cachorro e aqueles dois não tinham cara de amigos.
Sua mãe entrou e nos ofereceu café., ele prontamente aceitou e não me deixou alternativa.
- Você não acha boa idéia um cafezinho?
- Sim, é uma boa idéia.
- Então vamos para a cozinha, minha mãe está lá nos esperando.
Tomei meu café em silêncio, sua mãe tomou junto conosco, falou muito pouco.Conversamos coisas amenas, nada sobre sono, medicação, alimentação essas coisas que denunciam um doente na casa. Falamos sobre a beleza do dia e da chácara.
Na sua fantasia naquele momento, pode ser homem recebendo visita de uma amiga e não uma visita encomendada .Não sei o quanto o ajudei, mas sei o quanto ele me ajudou ...
Que destino, eu que estava lá para socorrê-lo, precisei ser socorrida por ele. Ele que muitas vezes, perdido na sua loucura foi tolhido do seu querer da sua vontade e dos seus sonhos, estava ali me dando as mãos me conduzindo .
Eu estava sem ar, sem luz, sem nada, só me restava naquele momento a escuridão, a indecisão a incerteza.
Ele feliz, firme, sabendo a que veio, me socorrer , me mostrar um caminho.
Que ironia! Eu que sempre tive tantas certezas, tendo a oportunidade única de viver algo tão sublime! de escancarar minha anormalidade diante desta vida de rótulos...
Que prazer indescritível, inverter os papéis e ser acolhida por ele, um esquizofrênico, naquele momento absolutamente normal, como eu, dentro da minha loucura!