A TAPERA DA JANELA AZUL
O cotovelo cheio de calos, rombudas pregas de desgaste repetido, açoitado pela curiosidade em olhar para o velho umbuzeiro dono de uma sombra secular e grandiosa, aguardava com sofreguidão o surgimento daquele a quem amara desde sempre. Os velhos olhos espichados não tinham ânimo para correr para mais distante; sempre paravam na sombra, para descansar o tempo de espera.
A menina de cinquenta anos viveu a infância e a adolescência com o vigor dos campos robustos; rolou por cima dos dias durante todos os tempos de sol e chuva, de luz e noite, de risos cobradores de presenças e esperanças. Era filha única, senhora e escrava, rainha e súdita. Tinha um pai...
A única alegria de Circe era a janela pintada de azul, que seu pai num dia de fazer nada, fez a janela azul. Nunca perguntaram por que azul; não havia nenhuma razão para perguntas, nem para respostas; se não existia curiosidade porque apenas não desfrutar da janela azul? Estava lá, à disposição de qualquer boca disposta a sorrir com ela ou pra ela, a janela pintada de azul.
À sua frente, derramada no mundão de Deus, a terra mendigando água, flores e galhos, também olhava pra trás só para ver a janela pintada de azul. João, Pedro e Antonio viajavam dias e dias só para ver, quando o sol abria sua janela branca de luz, aquela janela, na velha tapera, pintada de azul. Olhavam para a janela, olhavam um para o outro e partiam de volta para a distância da janela azul. Quando estavam bem longe, programavam outra viagem pensando e sonhando com a linda janela azul.
Parecia uma maldição ou um amor danado, enraizado no fundo do coração pela veleidade de uma cor que vemos nas flores, que observamos no céu, que existe nas aquarelas e no arco-íris. Era apenas uma cor, sem recortes, relevos ou encaixes, sem legenda ou script.
Acontece que era a janela pintada de azul.
Circe, quando de seus 17 anos, corria pelos campos vazios de gentes, apinhados de ervas e árvores, machucando os pés no pedregulho, enfiando os dedos na areia molhada de chuva, com o corpo vibrante de emoção pelo prazer de viver, com seu vestido de chita manchado de dias, com a manga rasgada, o cós amarrado com cordão, e os cabelos esvoaçando ao sabor da idade; desfilava para ninguém sua virgindade sacra e inocente.
Um dia quando Circe debruçava-se sobre a janela azul, viu sobre si uma mancha negra e pesada de chuva. Um raio dividiu-a em vários pedaços e marcou como ferro de ferrar boi, o pedaço de chão não muito distante da janela, de onde surgiu um imenso ginete cavalgado por um homem que mais parecia uma montanha. Com olhos profundos e penetrantes aproximava-se mansamente da janela azul, de Circe, da tapera, daquele momento mágico. Chegou! Com a pele negra como jabuticaba madura, luzindo aos raios solares, pomposo e silente, olhou para Circe que se via estupefata com aquela presença singular, percebeu a virgindade nos lábios, no semblante, nos trejeitos da moçoila e a venerou como se venera uma santa.
Um sopro de Deus uniu os dois em êxtase purificador, ascendendo aos céus para formar a vida, para trazer luz e esperança a Circe que tanto precisava amar pela primeira vez, e por todas as vezes. A luz diáfana penetrou no ventre da agora mulher e frutificou.
O homem sumiu, a tapera permaneceu, a janela continuou azul, Circe cresceu, o pai assustou-se.
_De onde ele veio, filha?
_Sabe aquela colina por trás do infinito? Pois é! Fica um pouco depois, onde está forrado o berço dos sonhos, na alcova do conhecimento silencioso. De lá ele veio, pra lá ele voltou e de lá nunca mais sairá.
_E o que ele veio fazer aqui nesta lonjura de lugar?
_Ora, pai! Veio trazer minha semente, plantar no meu jardim e deixar para eu adubar e colher a flor.
_E que flor é esta?
_É Hipérion, seu neto, o Pai do Sol e da Lua.
Todos tinham curiosidade em conhecer a janela azul porque a noticia da semente espalhou-se com a rapidez de um vendaval; queriam conhecer a donzela que sempre estava pendurada naquela famosa janela de cor particular. À lenda contada e recontada somavam-se espiritualidades e pormenores inacreditáveis, como se tudo não passasse da mais pura verdade.
_Era um monstro com chifres azuis, por isto ela mandou pintar a janela da mesma cor, borrifavam nos botequins. Assim acontecem as lendas interioranas no imaginário popular. Que venham outras...
E assim termina a fabula da Tapera da Janela Azul, com Circe, Hipérion, o alazão gigantesco e o negro que veio trazer a semente da vida.
ALAOMPE
Anchieta Antunes
Copyright
Gravatá – 26/06/14.