ACUADA
De repente, eu estava presa. Caminhava em uma rua movimentada, quando tropeço e me vejo dentro de um buraco localizado em pleno centro financeiro da cidade. Um vai e vem de pessoas concentradas em seus afazeres, despercebidas de um buraco desavisado por entre o asfalto. Escuro, fétido, claustrofóbico. Buraco que remete uma cova, local mal visto. Ouço vozes, vozes despreocupadas do meu esconderijo.
Considerando o modo como o meu corpo se ajustou no espaço restrito, parecia encomendado para a minha estatura, permitindo que eu me sentasse e cogitasse como seria o meu resgate.
Estava acuada, justamente no dia que acordei com a firme determinação de reavaliar as minhas atitudes ao longo dos últimos meses. Fazer considerações e ajustes. A promessa de abandonar certos hábitos. Chutar as pedras do meu caminho, jogar fora as muletas que me impediam de correr. Porque eu não precisava de muletas, nunca precisei. O dia do não; não para antidepressivos, decepções e demonstrações de falsa valentia. Não para as constantes manchas de lágrimas deixadas em meu travesseiro. Dia de proclamar um não para os insensíveis que cruzam o meu caminho e roubam meus sentimentos sem a preocupação de zelar por eles. Não para a vida acuada, que, por vezes, contribui para a minha queda.
À medida que os minutos passam, não ouço frases de consolo ou o som da sirene de resgate. Odeio sirenes e já pedi inúmeras vezes em pensamento que nunca precisasse ouvir o som estridente de uma. Mas a vida ensina que não é correto desprezar tudo e todos, porque pode surgir o momento de resgatar os fatos que foram negados.
Calor intenso, aparentemente sem indícios de chuva, o que era positivo dada as circunstâncias. Os pingos da chuva poderiam encharcar o buraco onde me encontro e misturar-se com as minhas lágrimas.
Inesperadamente, sinto a intensidade das rodas de um veículo. O som da buzina. O odor de gasolina nas narinas. Ergo o pescoço o mais alto que posso, na tentativa de espiar a rua e certificar se ao menos alguém percebia a minha farta cabeleira. Ergui os braços e tentei voar do cativeiro. Quebrei uma das unhas. Sujei meus sapatos. Solucei.
Comecei a gritar o mais alto que podia. Mas todas as minhas tentativas não surtiram efeito e eu permaneci ali, sentada em um buraco.
Num certo momento, cheguei a cochilar e o ato me fez bem. Sonhei que era uma formiga – dessas que atraem centenas de outras formigas e percorrem buracos semelhantes ao meu. Em grupo, não tinham dificuldades em descer ou subir qualquer cavidade; profundidade não era obstáculo para formigas. E quando o meu corpo de formiga e a minha mente de pessoa se preparava para escapar do buraco, o som de uma buzina me desperta. Rapidamente abro os olhos e percebo que ainda permaneço presa.
A tarde caia, dificultando as minhas chances de fuga. Num ato de desespero, atiro os meus sapatos para o alto e, de supetão, pulo para fora do buraco.
Surpresa, percebo que alcancei o meu objetivo; estava livre, diante de dezenas de transeuntes. Livre para caminhar em qualquer destino.
Observo atentamente o buraco que me perturbou durante horas; um misto de vergonha e estranhamento me consumiram quando vi que o local que eu considerei uma prisão; não passava de um buraco raso. Raso, contrário de profundo. Profundo era o meu pensamento acuado, que me impedia de sair. Raso tal qual meus olhos lagrimosos.
Percebi que nunca estive cativa, aprisionada ou impedida de escapar. Enquanto meus pensamentos estavam acuados, eu era senhora das minhas ações.
Do livro “O Protagonismo Feminino em Verso e Prosa”