Texto do livro: Cinzas Vivas
Capa Marta Bessa
Na aura da madrugada nascia o setembro embrulhado num manto de calor abafado. A vizinhança acordava e lavava o rosto nas gotas frescas de orvalho. As raízes rasgavam o renascer de mais um dia dedicado às colheitas do milho.
A vida era floreada de trabalho duro e banhada em gotas de suor.
No brilho ofusco dos primeiros raios solares, a gente da minha aldeia, abraçava com força e esmero, mais um dia de trabalho louvando o criador. As colheitas das batatas e do milho tinham que estar prontas antes da partida para as vindimas E, ser rogado para este trabalho era um privilégio e um sonho guardado no bolso para se arranjar algum dinheiro.
O tio Manel, era o rogador da aldeia e de um ano para o outro as pessoas rogadas iam reservando o seu lugar no role na lista. Porém, a cada passo algum novato espreitava a sua oportunidade para poder entrar neste barco. Num murmúrio da voz abafada e acanhada de uma mãe ouvia-se:
- Ó ti Manel, a minha pequena já está uma raparigaça, para a levar na sua roga.
Na sombra das sobrancelhas carregadas, o tio Manel mirava a moça e no canto da boca molhava o papel do cigarro mordendo as palavras:
- Ora vamos lá ver, e a moça já é capaz de carregar e correr no passo largo da tesoura? Traz lá a pequena.
O barco do tempo corria veloz e nesse instante chegara o dia da partida para as vindimas.
Os homens e os rapazes, levavam os seus haveres famintos numa trocha mal arrumada. As moças carregavam no cesto o sonho da ávida roupa e a realidade despida. O vazio do cesto era disfarçado com o preenchimento do volume da capucha e de umas broas de milho.
A roga (pessoas) esperava junto à estrada nacional nº2. No seu olhar de luz e sombra, espreitava um manto encoberto de curiosidade. Nesse instante e a todo o vapor aterrava uma camioneta, cinzenta de caixa aberta, com dois bancos de madeira mal assentes. Carregava a escassa mercadoria e alma de cada ser.
Uma voz rouca e feroz ressoava dizendo:
- Vamos a subir, Upa, trepem para aqui.
Os corpos balançavam e tocavam-se como os barcos à deriva. Em cada olhar espelhava-se um vagão carregado de incertezas, mas pincelado no canto uma luz de esperança.
Em cada momento da fatigante viagem, emergia um painel desconhecido, bordado de luz e cor. Em marcha lenta, a camioneta chegava à Régua e nessa travagem assustadora, os estômagos mal aconchegados faziam vibrar reflexos amarelos.
Por fim, o camião empilhado de gente, parava no lugar onde tudo era despejado. Por baixo das verdejantes ramadas, os feitores, miravam um a um e entre o espreguiçar das sobrancelhas piscavam o olho de regalo ou de troça pelos mais enfraquecidos.
Uma mulher com ar e um pucho arrebitado, apareceu com um molho enorme de chaves, abrindo a caserna das mulheres. A porta chilreava como o assobio de uma coruja. As camas eram pilhas de tarimbas com palha sobreposta. Nas mantas ainda permanecia o perfume agreste do suor e o aroma do mosto das uvas. A colcha era rendilhada com distintos salpiques de caruncho.
Perto da caserna, havia uma pequena sala onde a sopa era servida em tigelas de lata carcomidas. Os homens, esses comiam à ceia, batatas com sardinha. As mulheres estendiam o canto do olho para a espinha, quando a cabeça ainda estava colada. E num socalco de ansiedade meditavam no cheiro da espinha e assim tentavam aquecer o gelo da míngua.
Tudo era repartido em partes e formas diferentes. Parecia o muro de Berlim a separar os anseios de cada um.
Maria de Lurdes Silva Maravilha