Álbuns de fotografias Revistos
Quase ao acaso, mexo em coisas esquecidas, num canto fechado e lacrado pelo desejo de não sofrer, pelas recordações que trazem. Deparei-me de repente com relíquias guardadas em caixinhas douradas de saudade. Vi as fotos que lembram tempos distantes. Que contam histórias vividas e se fazem tesouros de uma vida. Vi o vulto do tempo fazendo carícias em minha alma e o coração meio arranhado das vivências saltitando em impulsos guardados. Diante de meus olhos mareados vejo os vultos da minha história. As lembranças contam-me coisas guardadas no invólucro que reveste a minha alma caminheira de estradas tantas. A memória reavivando passados. Girando a roda da vida. O silencio é o único interlocutor do meu instante, e assim, comigo mesmo, divido os meus suspiros emocionados.
Sigo em viagens imaginárias. Vou aonde quero e me deparo com fantasmas que eu própria criei. Por mais que tente me livrar das minhas memórias, os acordes ressoam em meus ouvidos. As lembranças são infindas. Misturo emoções. O amarelo do tempo não deixou sumir os traços mais marcantes de vidas que se misturam em mim. Há ecos de sonhos que adormeceram em meus inúmeros eus. Pergunto-me, porque o passado é tão mais consistente que a efemeridade do momento? Raízes de vida, quem sabe.
Devaneio, dentro da recôndita construção de mim mesmo. A história irrompe mesmo que fragmentada e entrecortada de ais, dentro das minhas lembranças. À soma de tempos,consiste em um passado indissolúvel, por mais que se tente apagá-lo há o implícito a revelar-se devagar. Avalio com pudor o inventário que trago ali, diante de mim. Preciosidades que mesmo com o bolor do tempo sobrevive em memórias imperecíveis.Alguns suspiros exalam sentimentos de perda. Refugio-me na persistência da minha generosidade em guardar reminiscências. O tempo repousa em minhas mãos dando-me o poder de apagá-lo, se assim o quisesse, bastaria rasgar páginas, mas tudo isso é pedaço de mim, incrustado na carne e na alma. As emoções são irreversíveis. E tudo isso é tão meu, que prefiro reter o tempo deixando a vida latejar dentro das minhas lembranças, para guarda-las mais uma vez, após o ritual do reencontro.
A tristeza arranha o meu peito e cada vez mais, eu tenho a certeza que preciso guardar as imagens e deixá-las permanecerem intocáveis, lá no fundo do passado, donde eu nunca deveria tirá-las. Elas só me mostram o quanto eu sou, apenas, mais uma que existe e que virará pó, para viver em alguma lembrança. As curvas sinuosas dos meus becos estreitos e lodosos da infância, onde nasciam heras ao acaso, ficaram perdidos lá atrás, a guisa de mundos mais alargados das avenidas do crescimento.
Cada vez tenho maior certeza que não devo abrir esses álbuns amarelados, de feições duras e olhos perdidos, que já não me enxergam, se é que um dia fizeram isso, mas caminhar a estrada que me resta a construir outras histórias, mesmo que para isso tenha o papel completamente branco diante de mim, onde eu possa parir, mesmo com dores, as palavras que silenciei, na preferência de guardá-las como se pudesse eu mudar o livro da vida que já veio escrito por outrem.
Ainda que haja hesitação em guardar esses álbuns no passado, é imprescindível fazê-lo, mesmo que me custe romper os fios de aço que me prendem a ele. Preciso também, cuidar de tapar as frestas que ficam no tempo, pois por elas tempestades podem atrever-se a passar. Custa-me desvencilhar-me desses fragmentos que me acompanham mordendo o meu calcanhar, para mostrar-me que são pedaços de mim, mas que é necessário seguir em frente e agarrar o mundo com as mãos firmes, para que ele não me escape como acontece com tudo o que nos cerca. Abro os olhos para vislumbrar o caminho diante deles. Fecho lentamente os álbuns e deixo-os esquecidos, até a próximasaudade, quem sabe.
Agora, se não me fizessem chorar tanto, valeriam as lembranças que armazeno no fundo da alma...
Lígia Beltrão