Amor ou Hábito - por Anchieta Antunes

Amor ou Hábito - por Anchieta Antunes

AMOR OU HÁBITO?

 

            Eles se conheceram quando estavam fazendo as provas do vestibular. Os nervos em pandarecos, uma ansiedade insana, e a eterna dúvida: será que vou passar?

            Olhava um para o outro sem nem mesmo saber que estava olhando, sem ver nada à sua frente; apenas um cacoete, um movimento involuntário. Ela terminou as provas antes dele, e como um autômato levantou-se com o calhamaço na mão e foi em direção à mesa diretora para deixa-lo em cima das demais provas já acumulada. Saiu da sala flutuando, como se fosse um anjo alado, ou uma andorinha querendo fazer parte do verão ensolarado.

            Clarinha é uma adolescente de pele morena, com lábios carnudos, e o seu nariz adunco imprime uma presença marcante.  Seus olhos amendoados confere à fisionomia um exotismo singular. Com uma cabeleira voluptuosa em cascatas selvagens, torna-se uma figura no mínimo chamativa. De poucas palavras sempre foi uma menina introspectiva, pensativa, como se estivesse desde sempre se preparando para uma vida monástica ou filosófica. Seus irmãos a chamavam de “a mudinha”.

            Sempre quis ser médica para “curar os males da humanidade”, dizia. Estudou com afinco, com dedicação e com uma determinação adulta, inda que não fosse. Não queria ser mais uma médica, tinha que ser a melhor de sua área, com muito empenho, trabalho e pesquisa.

            Seus pais ganhavam bem como professores universitários, porém a prole era grande, assim como a mesa de refeição. O dinheiro da casa era o suficiente para todas as necessidades do ser humano, principalmente de oito crianças em fase escolar, com material didático, com médicos e remédios. As férias eram sempre usufruídas na praia perto de casa, já que moravam em cidade costeira. Muito sol, muito banho de mar, uns peixes fritos, camarão aos domingos, e para os pais umas cervejinhas bem geladas. Eram todos muito felizes com uma família bem constituída, bem estruturada e muitos livros para leitura nos momentos de lazer. Assim Clarinha nasceu e cresceu. Estava, em idade, no meio do rebanho, com irmãos mais velhos e mais novos. Recebia broncas dos mais velhos e dava broncas nos mais novos. Uma hierarquia tácita e aceita por todos. O tempo passou como passa para todos os viventes e chegou a hora de prestar seu primeiro grande exame de conhecimentos. Continuava nervosa, sem saber se havia conseguido nota suficiente para ingressar numa Universidade Federal. Faculdade particular, nem pensar, a grana era curta para tanta gente precisando estudar.   

            Clarinha passou no vestibular com notas excelentes, não chegando a se aproximar aos primeiros lugares, porém com notas invejáveis. A biblioteca da Universidade era grande e forneceu quase todos os livros de que precisava para o primeiro ano. Alguns ela conseguiu com sua amiga Carol que já cursava o segundo ano de medicina.

            Guilherme vinha de uma família pobre do sertão do nordeste. Com muito esforço conseguiu, sempre em escolas públicas, terminar com louvor o 2º Grau. Os pais sempre o estimularam a estudar, e nunca lhe exigiram que trabalhasse para ajudar no sustento da família. Não fez Cursinho para Vestibular; estudou sozinho em casa durante um ano e meio. Não queria correr o risco de prestar um vestibular e ser reprovado. Para prestar o vestibular veio do interior e ficou na casa de uma tia, irmã da sua mãe. Dona Maria, professora primária, sempre o estimulou a cursar uma faculdade de biologia, porém, Guilherme queria ser advogado, e para isto fez o vestibular. Passou em 8º lugar, o que o deixou muito feliz e realizado.

            O Campus Universitário era imenso, e podia acolher todas as faculdades procuradas pelos adolescentes ingressantes no estudo superior. Guilherme morava, na casa da tia, a cinco quadras de sua faculdade. Todos os dias ia caminhando, o que lhe permitia economizar o dinheiro do ônibus. Chegava cedinho e ia direto para a Biblioteca da Universidade, onde estudava durante uma hora inteira, antes das aulas começarem. Da biblioteca levava pra casa alguns livros curriculares. Livro estava caro e a grana era pouca para gastar, se podia economizar pedindo emprestados os livros da biblioteca.

            Quase todos os dias encontrava-se com Clarinha no caminho da sala de aula. Começaram a conversar sobre os mais variados temas universitários. Sim! Tudo girava em torno dos seus cursos. Sempre. Percebia-se muito entusiasmo de parte a parte quando discutiam assuntos inerentes aos seus interesses. Sentavam-se na escada de acesso às salas e ficavam um tempão trocando figurinhas.

            Esse convívio quase que diário durante quatro, cinco ou seis anos tinha que terminar em namoro. E foi o que aconteceu. Guilherme formou-se antes de Clarinha, e não demorou a encontrar um emprego numa Banca de Advocacia da Capital. Trabalhava durante o dia e de noite cursava o mestrado. O tempo foi passando, Clarinha terminou seu curso de medicina e foi aceita em um hospital para fazer sua residência. A esta altura Guilherme começou seu doutorado, e com muito esforço e dedicação absorveu todo o conhecimento que exige um doutorado, seja de que matéria for.

            A esta altura Dr. Guilherme, respeitado jurista ganhava muitíssimo bem, e propôs casamento a Gracinha, também médica renomada na cidade. Casaram-se e foram para a lua de mel na Europa. Foram quinze dias de viagens, de surpresas agradáveis, de novos conhecimentos, de cultura europeia, hotéis e noites em claro amando-se desesperadamente.

            Voltaram para o Brasil e a rotina de trabalho absorvia todos os momentos do dia; ele com suas ações jurídicas, e ela nos hospitais e consultório. Claro, os filhos vieram, e cresceram. A vida se repetia. Um casal com filhos, uma família constituída, um caravela em alto mar rompendo as ondas, caindo nos buracos d’água, subindo na crista da onda, muita chuva molhando o mar, encharcando a vida de inusitadas aventuras, o mar, às vezes bravio, outras vezes sereno, brilhava, à luz do sol altaneiro.

            O amor entre os dois nunca arrefeceu, o carinho redobrava a cada momento, o cuidado recíproco sempre fora uma tônica vivencial, as atenções para os mínimos detalhes, sempre presente. Nunca houve dúvida de que se amavam muito e que este amor era forte o suficiente para romper a eternidade. Após 40 anos de vida conjugal...

_O que foi que houve? Perguntou Guilherme ao chegar á mesa para o café da

manhã.

            _Nada! Não aconteceu nada, por que pergunta? Está tudo em paz!

            _Não está tudo em paz! O que foi que aconteceu, perguntou novamente?

            _ Como é que você sabe que aconteceu alguma coisa se acaba de chegar da sua cama, com os olhos ainda cheios de sono?

            _ Pela sua fisionomia, ora! Alguma coisa aconteceu, desembucha logo...

            _Tá bom! Não posso mesmo lhe enganar... prepare-se para a noticia! ;

            _Notícia ruim a esta hora? Eu não mereço!

            _Não é notícia ruim, é uma ótima notícia, só que eu me emociono. Nosso neto passou no vestibular com ótimas notas. Tá. Falei!

            _E precisa chorar por isto, como se fosse novidade. Eu já sabia que ele ia ser aprovado com ótimas notas. Quer um lenço?         

            _Quero sim!

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            Quando se vive muito tempo com uma pessoa, nós passamos a conhecer cada expressão facial do ser amada, cada movimento do corpo ao caminhar, cada entonação ao falar. Os segredos são revelados pelo olhar, pela cabeça abaixada naquele momento crucial, pelo suspiro involuntário. Até mesmo aquele beijinho dado despreocupadamente na hora de se virar para dormir, revela o estado de ânimo do companheiro.

            As intimidades de um casal desobstruem todas as reservas de pudor, de falsa dignidade, até porque quando nos entregamos ao ser amado, o fazemos sem restrições. O amor é a linha reta, curva, obliqua, ascendente, descendente, é a única linha que passamos a adotar, a polir com nossos passos, com nosso comportamento de companheiro, de amante, de amado, de entrega total e absoluta e obstinada.  Confiamos vida e morte, alegria e tristeza, exaltação e depressão, gula e inapetência. Somos UNO.

            Duas roupas, duas pessoas e apenas uma sombra.

            Um casal que envilece junto não carece de palavras para se entender, para se descobrir em suas ações diárias. A unidade é tão compacta que a respiração é um ato involuntário que sufraga as necessidades do companheiro, independente de solicitação. Alias, com anos de convivência não há mais necessidade de solicitação, de parte a parte. Sabemos por conhecimento tácito o que o companheiro precisa naquele exato momento. Existe interação de alma, de sentimentos, de amores infinitamente explorados, de carícias esquecidas na caixa do embevecimento pueril que perdura nos corações dos eternos apaixonados.

            Viver e amar aquela pessoa, é uma verdade escancarada, que não precisa confirmação. Soa mais como vaticínio eclesiástico.

Após 30 ou 40 anos de convivência o que sentimos pelo outro? Amor ou hábito?

Para mim o hábito está circunscrito aos movimentos que executamos por reflexo condicionado, já que temos repetido por tanto tempo.

O amor é um caldeirão de emoções em eterna ebulição, culminando a cada instante com uma demonstração de verdade emocional, longe do racional, distante do pensamento elaborado, divorciado da mesquinhez de trocas embargadas pela ambição de sentimentos pequenos.

O amor é puro, é verdadeiro, é simples e ao mesmo tempo sumamente complexo, difícil, senão impossível de entender, de racionalizar, de elaborar uma equação que o explique.

O amor, simplesmente É.

 

Anchieta Antunes

Fevereiro/2018.

 

 

 

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