Baile do Outono - por Lígia Beltrão

Baile do Outono - por Lígia Beltrão

Baile do Outono

 

O dia era especial apesar de ser uma tarde de terça-feira. Era um baile para os idosos do lugar, que é feito todos os anos. Eles foram chegando aos pares, em grupos e trazidos por carros que servem aos “lares” onde residem. Olhos brilhantes. Iam se acomodando nas mesas. Sorrisos nos rostos cansados, mas que estavam aos poucos se iluminando. Aquela seria uma tarde diferente para eles. Eu não imaginava é que seria para mim também. O baile foi promovido pala Câmara da Lousã, Coimbra, para os seniores do Concelho, e chamado de “Matiné Dançante da Primavera”. Homens e mulheres que lutaram uma vida inteira pela sobrevivência, e hoje, no outono da existência, caminham trôpegos e trêmulos em busca de alguma alegria, que, quem sabe, muitos deixaram adormecidas em algum ponto da estrada por onde caminharam.

       Entravam silenciosos, mas quando viam o palco com os músicos, logo abriam um sorriso. Parecia que voltavam no tempo e encontravam seus eus e “adonavam-se” de si mesmo outra vez. Primeiro entrou o homem alto e elegante, vestindo paletó e gravata e estava acompanhado por três mulheres igualmente bem vestidas e de olhares curiosos. Este dançou todas as músicas que foram tocadas, sempre com um sorriso nos lábios, e cantou a maior parte delas. A seguir mais algumas senhoras. Depois, alguns casais e mais um grupo de mulheres. Uns homens de gestos comedidos, outro, que já não levantava a cabeça, acompanhado de uma mulher vestida de azul e que parecia enfermeira. Foram ocupando os seus lugares e pouco a pouco se colocando à vontade. Receberam as boas vindas e a promessa de uma tarde de alegria, com muita música para eles dançarem. Foram se enturmando uns com os outros e logo estavam todos conversando como velhos conhecidos. Todos haviam embarcado no mesmo clima de euforia.

       A música entoou os primeiros acordes e logo começaram a dançar. Foram formando os pares ao modo deles. Uma mulher com outra, as mais corajosas convidavam os cavalheiros, e os sorrisos começaram a enfeitar aqueles rostos marcados pelo tempo. Mantive-me a observar tudo o que se passava naquele imenso salão. Logo se encheu de gente e de alegria, o espaço de dança. E as fisionomias foram ficando cada vez mais adocicadas e dançavam e cantavam numa alegria ímpar fazendo um inusitado coro com a música.

Observei bem a pequena senhora de mãos trêmulas e olhar perdido no vazio, mas que dançou bastante e com o passo bem acertado, para o seu estado de saúde, que era visível. As duas mulheres negras, ainda fortes, sentaram numa mesa bem na entrada do salão. Muitos deixavam as bengalas e seguiam a música que o cantor alegremente entoava.Meu coração estava também em festa e cantava silencioso, cânticos de louvor aos anjos do céu, por presenciar tão magnífica dádiva. Havia um amor desconhecido por mim, ainda, naquele espaço que agora exalava o cheiro de vida. Houve a pausa para o lanche, que foi servido carinhosamente porvoluntárias que organizaram a festa para a Câmara. Serviram sanduíches diversos, bolo, chás, vinhos e café. Todos nós partilhamos do momento numa grande e bela confraternização.

Vi-me naqueles rostos vincados, que se iluminavam mais e mais a cada música tocada, quando o baile recomeçou. Olhei a mulher que sorridente e brincalhona “intimou” um cavalheiro, vale salientar que era o mais afoito dos homens, a dançar com ela. Após a negativa e muita insistência por parte da mesma, ele cedeu e lá se foram rodopiando pelo salão. Daí em diante, eles dançaram todas as outras músicas conversando e sorrindo, e ele, claro, se achando o tal. O casal, que não se largou um só momento e dançava levemente, como seflutuassem sobre flores, leves e belos e muito elegantes, chamavam a atenção.

       Eu ia filmando aquele baile para guardar a história dessa tarde, e me sentia parte deles. Desses que lutaram uma vida inteira e distribuíram amor e cuidados com os seus, estavam ali, tantos deles longe das famílias, vivendo em “lares”, sem maiores sonhos ou perspectivas de mais nada. Extravasavam ali as alegrias contidas. Os desejosnão satisfeitos. Altivas cabeças enfeitadas de nuvens eram agora, donas de si mesmo, e assim, eles seguiam ritmados. Não se importavam com a simplicidade daquele lugar, pois ele resplandecia luz através dos seus sorrisos de felicidade. Quanta história a vida nos conta! E ali, naquela tarde eu pude ler inúmeras delas, diferentes, mas que no seu outono, se igualavam em folhas amarelecidas e rugosas, olhos úmidos e mãos trêmulas. Passos (in) certos, ao final de uma estrada vivida, que os unia e levava a um só destino.

Começaram a levá-los embora. Uns, sozinhos, outros acompanhados, a maioria nos carros dos “lares”. O sonho fora vivido e era chegada a hora de acordar para a realidade dos dias, que certamente voltariam a ser iguais, como duas cabeças de fósforo. Até quando? Incógnita da vida. O salão agora está vazio.

Num canto, esquecida por alguém,uma bengala solitária descansa do caminhar do tempo...

 

                                                          Lígia Beltrão

 

 

 

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