BRUMAS (Conto) III
Estava anunciada uma carreira de sucesso.
Muito à semelhança dos pais, é no hospital que conhece o namorado, um jovem colega por quem se apaixona sem reservas.
Quiseram casar, o que aconteceu rapidamente.
Porém, viveu infeliz a maior parte do tempo que a “união” durou e nem o facto de ter sido mãe duas vezes melhorou o mau relacionamento com o marido que se revelara uma pessoa difícil.
Em horas apertadas, evitando pensamentos deprimentes refugiava-se nas leituras e na lembrança da felicidade passada ao lado dos progenitores. Estes, que continuavam a dar-se muito bem, assistiam, impotentes, à infelicidade da única filha.
Ingenuamente terá pensado ao “dar o nó” que seria para toda a vida…
Até que a morte os separasse.
Não aconteceu. Não foram felizes para sempre e, antes que a morte viesse, separaram-se.
Razões? Variadas e deprimentes.
Desde logo um companheiro com mau feitio; rezingão, implicativo, um ditador em potência.
Ele sim casou para ser feliz. Ter mulher de relevo na sociedade. E filhos.
Era-o?
Margarida nunca conseguiu resposta às suas interrogações pois Carlos foi sempre uma pessoa impenetrável. Intragável, também.
Tinha dias sim (pouquíssimos) e dias não (muitos).
Foi ganhando terreno e tornou se dono da vida dela. Controlador mor do reino da amargura e do azedume.
De vez em quando, para inglês ver, um sorriso forçado, uma brecha de sol invernoso.
Ela, prática nas suas considerações, tinha aprendido na medicina a ser fria e distante. Não perdia tempo com "lamechices" ou lamentações e muito menos com discussões infrutíferas.
Trabalho e filhos também não lhe davam espaço a considerações filosóficas.
Quase sem darem por isso, foram-se apartando um do outro vivendo em função da carreira e dos filhos.
Vinte anos passaram e o culminar da separação estava ali, a poucos minutos e a meia dúzia de passos. Iria acontecer no interior do velho edifício onde os cidadãos supõem ser um local de justiça.
Tinha todo o sentido que fosse naquele espaço.
À pergunta habitual do magistrado nomeado para anular a “sentença” proferida pelo padre, anos antes, nenhum dos dois anuiu.
Era a tentativa de reconciliação da praxe.
Margarida optara pelo radicalismo:
– Não, não quero pensar melhor. Mais do que pensado, está decidido. Há décadas!
A minha futura ex-mulher tem razão. Não há nada a consertar! É um casamento morto e enterrado.
Ambos o sabiam e, pelas atitudes tomadas, o chamado juiz da paz, soube-o também.
Precisavam apenas de legalizar a situação. Calar de uma vez por todas os zunzuns…
Mas, atenção, não haveria velório.
Alegria, talvez… pelo menos, da parte dela!
Festa se possível! Ainda que interior…
Esperara, pacientemente, ver os filhos criados, ganharem asas e tomarem rumo próprio. Foram estudar para fora de Lisboa.
Ajudou-os, naturalmente, a tecer fios e musgos com que haveriam de construir o próprio ninho.
No dela, agora vazio de crias e de sentido, as sobras de uma vida isenta de esperança cavaram o irreversível. Não lhe agradava a ideia de passar o resto da vida ao lado de um companheiro sempre mal-humorado.
Tarde de mais para mudar feitios… e, tão pouco, havia vontades!
Descontraída e liberta, era como se sentia naquela manhã após a assinatura de um divórcio anunciado.
Terminara o martírio.
Ao ver-se porta fora suspirou de alívio e deu asas à jovialidade reprimida durante “séculos”.
E correu. Correu como uma adolescente sentindo o ar afagar-lhe o rosto ainda quente e corado. Queria apenas apanhar a mala que preparara na véspera.
Tinham acertado vender a casa de família logo que houvesse comprador.
Há muito que dormiam em quartos separados e não estranhariam continuar sob o mesmo teto por mais algum tempo.
No regresso, ajeitar-se-ia no seu canto, até ao dia D: Liberdade Total.
Separados, mas não inimigos. Tinham dois filhos lindos e haveriam de ter netos que manteriam os ténues fios que restavam dos laços.
Conceição Oliveira
in TEMPO SEM HORAS, Contos, edições Vieira da Silva, 2013