Celeste, Cozinheira de Primeira - por Fernando Jacques - JAX

Celeste, Cozinheira de Primeira - por Fernando Jacques - JAX

Celeste, Cozinheira de Primeira

 

            O capítulo derradeiro de uma infância feliz na roça tem de ser dedicado a alguém muito especial na vida de Tiago. Piedosa, simples, prestativa e amiga, Celeste foi dessas almas boas que alguns têm a sorte de conhecer e o dever de admirar. Criada desde menina por Chiquinha, passou a fazer parte da família, sem nunca deixar de exercer seu trabalho diário de cuidar da cozinha e de outros afazeres domésticos. Quando casou, ocupava um cômodo vizinho ao engenho do sítio, equivalente a uma quitinete no linguajar citadino. Depois de viúva, Celeste mudou-se para o quarto contíguo ao de tia Chiquinha, dividindo o aposento com Genoveva. Tinha em comum com a avó de Tiago o profundo sentimento religioso, indo à missa todos os domingos, hábito que manteve mesmo depois do acidente sofrido ao ferir-se em prego enferrujado que lhe rompeu a veia de um dos tornozelos. A ferida jamais cicatrizou, causando-lhe dor aguda e perene. Suportava esse sofrimento com serenidade e bravura dignas de elogios. Celeste parecia perturbar-se somente com as fortes tempestades de chuva e relâmpagos, comuns no verão. Cada vez que escutava o trovão, encolhia-se toda, em clara demonstração de medo.

            Cedo se afeiçoou ao filho de Dina e converteu-se em sua ardente defensora, toda vez que ele era repreendido por alguma arte, até mesmo quando trancou Raulzinho no engenho após uma discussão boba entre os dois primos. Tiago também mostrava grande carinho por Celeste, a quem alcunhou de Cozinheira de Primeira. Apesar de ruim de garfo quando pequeno, o que incomodava e preocupava sua mãe Dina, o magricela sempre comia com visível gosto os pratos preparados por Celeste. Do frango caipira bem temperado ao apetitoso feijão com arroz, passando pela fritada de ovos com um toque de alho, a lista de iguarias era suficientemente extensa para dar água na boca e estimular o apetite do guri em suas férias no sítio.

            Tiago apreciava o jeito que Celeste tinha para lidar com a criação. Amansava qualquer galináceo com a maior facilidade, em provável evidência de que o instinto animal detecta a candura nas pessoas, consentindo na aproximação. Mesmo sem milho ou outro petisco nas mãos da cozinheira, os bichos acercavam-se dela sem temor e deixavam-se apanhar no colo sem protestar.

            (...)

            Depois de adulto, Tiago ficou sem rever Celeste por longos anos, justamente os últimos da existência da sua Cozinheira de Primeira. Ademais do problema no tornozelo, a velha amiga passou a enfrentar várias mazelas de saúde, inclusive uma triste cegueira, que a impediu de continuar a fazer companhia à tia Chiquinha em seus momentos finais. Alguns anos depois da morte de Chiquinha, Celeste faleceu longe do sítio, deixando gratas recordações a tantos quantos a conheceram.

            Assim como a Irene do poema do célebre Manuel Bandeira, Celeste certamente entrou no céu sem ter de pedir licença a São Pedro.  

 

 

Trecho de Ibitinema (Ibitinema e Outras Histórias, ed. Lamparina Luminosa, SP, 2016)

 

 

 

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