Crítica literária sobre o livro À janela do teu corpo de Joaquim Monteiro
"Mergulho, e procuro em apneia a luz na escuridão.
Se a encontrar: perguntarei aos peixes profundos
qual a sabedoria das trevas."
Joaquim Monteiro © À janela do teu corpo
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Da observação e leitura mais vasta, que não minuciosa - porque isso fica para o leitor e o crítico -, da publicação «À janela do teu corpo» de Joaquim Monteiro, eis da obra um quadro maravilhosamente pintado, pelo poeta, com letras sobre quatro panos da mesma cor onde o corpo poético nunca deixa de ser o mesmo - a MULHER: numa poesia de imagens, marcadamente complexa mas, perfeitamente entendível, requerendo, contudo, alguma cultura e ginástica mental por quem o lê e interpreta, se bem que o poeta não escreve para ser interpretado, ao contrário, o faz para ser entendido, para ser ouvido, para ser sentido - assim o poeta fabricou a sua obra.
Ao tempo e noutro contexto de escrita sobre obra literária em que Joaquim Monteiro verteu saber e poesia, escrevi dele que «no (seu) dizer complexo e musical do poema, o "desenhador" da palavra que a burila com mestria, enaltecendo-a, quando a transporta "para lá / da substância palpável", é um filósofo. Mais do que poeta ou, melhor dizendo, para além de poeta é um filósofo que nos dá muito que pensar e nos escreve muito, para pensarmos ainda mais.» Sublinho aqui e para esta obra, com firmeza e convicção, o que escrevi, sobre o poeta, acerca de outra obra passada.
A poética em «À janela do teu corpo» bebe a "sede" na "bebedeira azul" do CORPO DA MULHER que venera, em toda a sua obra (ao fim e ao cabo em toda a obra composta de quatro partes), se bem que nas suas três primeiras partes - a MULHER, o CORPO, servindo-lhe de charneira o AMOR - seja, onde ele converte, com total magnitude, o ventre da mulher em pão, que canta em verso, sobre quem talha a obra numa extensa ode a ela e ao amor. Ela, a mulher, como "romã aberta no (e ao) delírio dos (seus) lábios" é a "água inicial" da vida do poeta que dá luz à noite e ilumina a casa, que sara as feridas abertas e regressa, depois, ao "ponto original da febre" esperando "que o amor a afague, sonhando um novo dia".
O poeta Joaquim Monteiro no desbravar do corpo feminino "nu e azul" faz trinar as cordas da sua guitarra de loucura no melodiar da voz dos pássaros que arde clamando o amor. É nessa altura que o corpo - da palavra, aqui em forma da mulher que canta - se molda ao sabor das horas, que os novos trilhos se abrem com o sabor "da saliva de sal" - um indicativo dum saber purificador, dum futuro de sabedoria, ainda que por dizer, mas que se augura promissor no amor. Num contexto bem mais amplo e que abrange toda a sua obra, a expressão "saliva de sal", é aqui tomada como o sentido purificador do amor, que é, afinal, o significado bíblico do sal: aquele que impede e afasta toda a decomposição, toda a sujeira moral e espiritual que será, se não fulminada, pelo menos decantada pelo fogo que cresce na e com a palavra em toda a sua obra. O símbolo da palavra do poeta se firma descobrindo-se na "secreta vocação da luz" espalhando-se na "planície" do seu ventre com a força de quem ama.
A sua evocação ao corpo é de tal ordem sublime, de tal forma contemplativa que a força do ser amado faz transformar o poeta no corpo que ama - transforma-se o amador na coisa amada - transformando o profano (que canta) no sagrado (que diviniza) "na noite de todos os prodígios". É o acto da entrega que se purifica no absoluto "da raíz" do corpo que é seios, olhos, mãos, saliva, lágrimas, "segredo partilhado e enlaçado" "nas marés do corpo", "ventre (que) toca o céu / numa explosão de gritos, murmúrios e silêncios.".
Selam-se as duas margens da parte principal do corpo da obra - MULHER que canta, MULHER que inventa para cantar, MULHER que diviniza, nunca esquecendo o real enquanto a canta, MULHER que possui, MULHER de quem conhece a alma e o ser, mulher-CORPO que sublima e engrandece, que venera, porque o poeta o constrói na perfeição do seu espaço e no domínio do seu tempo, com o seu rosto que lhe habita o CORPO, que lho consome consumindo-se, - com o plasmarem-se no AMOR (a selar as margens da MULHER-CORPO), símbolo mais alto e nobre da perfeição. Direi, de toda a perfeição da obra. E no outro corpo se transfigura o poeta, que nos diz: "(...) o corpo que me cobre / (...) deixa-me transfigurado num coma de sentidos / partindo para lá de mim, ao encontro dessa mulher", quando ao outro se abraça na "noite como se fora dia." E acrescenta, és "água, (que) desces ao fundo de mim, / para que com a tua sede / possas medir a intensidade / de minhas profundas e inalienáveis águas."
É a MULHER-CORPO, o motivo poético da sua obra: "procuro nos teus seios o mote do meu poema" e o poeta o constrói com "as palavras que o (...) ventre dita." É o corpo feminino tornado na "sintaxe mais perfeita, na (...) gramática reinante (...)" de toda a lírica de Joaquim Monteiro. Uma lírica suave onde se plantam fortes metáforas e significativas imagens que são, afinal, o suporte da obra que se quer literária, que se quer e se preza de ser talhada a rigor no labor da forja oficinal para que, um dia, conste dos anais da literatura contemporânea.
É que, a não ser talhada com o rigor que o modus literário exige, a obra não iria além de "mais um livrito de versos para entretenimento lúdico do veraneante sentado num banco de jardim à espera que o dia passe". Mas não!
A obra de Joaquim Monteiro, «À Janela do teu Corpo», é isso mesmo: a força das "fontes (...) / sobre o corpo da matéria", quando "o corpo" se transforma em cinzas que "já nem a terra as quer", mas "o oceano purificado do fogo (...) as deseja".
É a força e a perfeição da palavra que canta a MULHER-CORPO em que o AMOR é o elemento aglutinador, é o eixo-força da razão e do sentir, que busca a sabedoria mesmo que esta se esconda nas "trevas".
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© Alvaro Giesta (poesia e crítica literária)
Não escrevo segundo as normas do novo acordo ortográfico
(do) prefácio ao livro "À janela do teu corpo"