E U V I...
Um depósito higiênico de rebotalhos banhados.
17 homens e cinco mulheres.
Nessa idade não existe sexo, mulher e homem, masculino e feminino, mas sim físicos devastados pelo tempo inexorável. O que sobrou de vidas alucinantes, de risadas estridentes, de amores correspondidos, de correrias nervosas, de aventuras, às vezes irresponsáveis, mas que a idade suporta e justifica.
Foi no nosso inverno serrano, numa manhã que mais parecia um lindo alvorecer primaveril. O sol brilhava no céu límpido e cheio de nimbos, e os galhos saltitavam ao sabor do sopro de Deus nos seus campos imensuráveis. A vida sorria, as cores vibravam e os corações pulsavam ritmados no peito quente de emoções.
La chegamos carregando fraldas geriátricas e mantimentos para a cozinha. A preocupação desvaneceu-se nas fisionomias dos responsáveis pela Fraternidade Espírita de Mandacaru. Uma casa que abriga idosos de ambos os sexos. Uma missão evangélica, uma caridade estendida a pessoas que perderam o senso de gerir suas vidas de maneira responsável. Seus parcos recursos são carreados para um caixa único que distribui equanimemente uma porção de solidariedade humana.
Ali não existe cor de pele, crenças, credos e ou opiniões preestabelecidas; existem apenas diferenças aceitas por todos, sem nem mesmo perguntar por quê! Uma unidade comportamental estende-se por toda a casa de cômodos confortáveis, ventilados, e com o sol esquentando os corações sôfregos de carinhos e atenções. São todos amigos, embora se tenham conhecido há segundos. A idade aproxima as distâncias, aconchega os desconhecidos, acaricia os necessitados de zelos. A idade não tem a cautela, tão presente nos jovens, para acolher anônimos, no seio das atenções tão indispensáveis quando dobramos a curva da presunção, e mergulhamos no maleável caminho da compaixão. A idade é o último baluarte da esperança de vida, é a sofreguidão de um hausto de existência cambaleante.
Um corredor clareado por paredes caiadas nos levou a um quarto onde deitadas, estavam duas senhoras idosas, senis, não!
Dona Ana com seus 102 anos de percurso neste mundão de meu Deus, conversou com o Irmão Zeca como se o tivesse visto no dia anterior.
_ A senhora me conhece. Eu sou filho de Zezinho da Venda, a senhora foi minha vizinha, lembra?
_ Como é mesmo o seu nome, meu filho?
_ Meu é Zeca, filho de Zezinho da Venda, lembra dele?
_ Ah! Me lembro demais, seu pai era muito meu amigo .
_ A senhora se lembra de Dona Marieta, sua vizinha?
_ Lembro demais de Marieta, minha amiga do peito, como havia de não lembrar. Eu tô velha mas não tô doida não!!!
_ Eu sou genro de Dona Marieta, sou casado a filha dela.
_ Eu sei quem é. Na venda do seu pai eu ia toda semana comprar café e açúcar. Eu adoro café bem quente e forte com bastante açúcar, só que agora me proibiram, não sei por que!
E assim conversaram por uns quinze minutos, os dois lembrando-se dos tempos idos quando ela vivia na rua da cidade, fazendo parte da sociedade civil ativa. Criando filhos, cuidando dos netos, orientando os jovens.
Na sala destinada a recreações, há uma televisão de tubo, onde os hospedes assistem suas novelas, embora sem compreender bulhufas, que dão risadas de programas que assistem porque a tv. está ligada, e descansam em poltronas confortáveis.
Naquele momento a tv estava desligada e alguns senhores e senhoras descansavam da vida, bem sentadinhos na maciez de um sofá largo e aconchegante. Em um deles consegui ver uma rodela óssea, coberta por pele macerada, enroscada em si mesmo, sacudindo uma das mãos em busca de algo que nunca havia perdido. Era um movimento repetitivo que, talvez, pretendia reverter os dias passados, para começar tudo de novo em seu final de percurso. Posso afirmar que se tratava de um ser humano, ou o que restou dele. Se alguém perguntasse em brado vigoroso: _Alguém daqui quer morrer agora? Um silêncio visceral iria tomar conta do lugar, e aos pouquinhos, para não chamar a atenção, a sala iria ficando deserta, sem um pé de gente, sequer.
Seu BIRÓ, ex-fumante inveterado, continha-se a duras penas a apenas 6 cigarros por dia. Dois pela manhã, dois à tarde e dois de noite, até que conseguisse deixar de vez o vício nefasto. Alguém lhe perguntou:_Seu Biró, como está?
_ Com vontade de fumar!!! Sinto muita falta dos meus cigarros, não sei o que fazer!
_ Mas, seu Biró, cigarro faz mal pra saúde... disse o Irmão dos Santos.
_ Viver também, respondeu o dono da verdade.
Seu Biró continuou caminhando pelas salas, pátios e corredores à procura de seus cigarros escondidos por aquela gente má. Em determinado momento nos levaram para um quarto dos “ACAMADOS”, ou seja, aqueles que não têm mais condições de caminhar. Estão fadados a viverem deitados em suas camas, cobertos com lençóis, e cobertores de lã. Cheguei-me ao lado cama de um deles e perguntei: _Como está o senhor? E ele respondeu:
_ Conhece Recife?
_ Conheço sim, respondei.
_ Eu vivia lá, respondeu.
Acho que ele queria dizer que sua vida tinha sido vivida toda em Recife, na Capital do Estado, um grande avanço em sua carreira de trabalhador. Um progresso na escala social, motivo de orgulho que ele levaria para o túmulo.
Dois hóspedes viviam em melhores condições de conforto, porque suas famílias haviam providenciado a construção de quartos ventilados, com banheiro particular – uma suíte – com televisão, ventilador, e uma cômoda para colocar suas roupas e utensílios rememorativos de sua existência, de quando faziam parte da vida ativa na cidade em burburinho. Um deles, jovem ainda, com seus 40 ou 50 anos, havia se quebrado todo quando caiu de uma moto. Naquele momento estava fazendo fisioterapia com um profissional da cidade vizinha.
Vários cômodos em construção esperando a entrada de recursos para serem concluídos; um alpendre na parte de trás do prédio feito aos pedaços dava para uma pequena horta com legumes e verduras do dia a dia, como alface, couve, coentro, cebolinha e outros cultivos de horta doméstica.
Pátios internos com bancos de concreto, com palmeiras e arbustos sombreando a cocuruta de prata dos senhores passeantes e donos de suas vidas restritas. Assim terminamos nossa visita de beneficência e, com o coração sangrando dirigi-me ao meu carro com o Irmão Zeca, e partimos para nossa vidinha na cidade grande.
Dispor-se a construir um templo para abrigar velhinhos contando apenas com doações, é um ato de muita coragem e responsabilidade.
Dedicar-se a cuidar de pessoas idosas, cheias de caprichos, pessoas que só sabem reclamar de tudo, ter paciência e dedicação para zelar pelo bem estar de idosos que não se conhece, isto sim, é um ato de amor. De muito amor ao próximo desconhecido, anônimos voluntariosos devido à idade, e ainda assim dispensar toda a atenção que eles merecem, é de uma nobreza de espírito invejável.
Um cidadão que não tive o prazer inusitado de conhecer, chamado Junior, fez isso; fez o que eu jamais teria coragem de empreender, de tocar adiante um projeto de tamanho alcance social e caritativo. É indispensável muito empenho, determinação e zelo pelos menos favorecidos, pelos necessitados de atenções especiais. Parabéns Jr. você merece um premio da população da sua cidade, das autoridades constituídas. Parabéns aos velhinhos que contam com sua atenção e dedicação e zelo.
Fiquei emocionado e impressionado com a visão de seres humanos em final de vida, e pensei: não falta muito para eu mesmo está nas mesmas condições de degenerescência visceral. Começo, meio e fim. A vida é um raio fulgurante que termina logo que se inicia. A história é construída em cima de milhares de séculos, a vida individual conta com pouquíssimos anos sobre o lago da subsistência. Somos anfíbios. Que assim seja...
Anchieta Antunes
30/06/2018.