Exuberância da vida
Vestida de um encarnado escuro, jamais visto por ali, ela destacava-se dentre todas as outras, com a sua beleza esplendorosa. Era única! A natureza havia caprichado divinamente. Chamava a atenção de todos e todos a queriam. Requebrava-se ao som do vento murmurante que falava aos seus ouvidos palavras de amor. Suas pétalas mostravam-se entreabertas, gotejadas ainda das carícias do orvalho que a visitara na noite escura, testemunhada pelas estrelas rutilantes e pela lua, que ria manhosa alumiando e fazendo brilhar o gozo do tempo.
Gostava dos carinhos que recebia. Fechava os olhos e sorria em silencio desfrutando das carícias de mãos apaixonadas. Sabia o quanto era desejada. Todos ao seu redor a cortejavam e admiravam. Durante o dia, o sol lambia enamorado, as gotículas do gozo que o orvalho da noite anterior havia deixado. Atendia os chamados dos deuses e se entregava a cada um, exibida que era! Sabia-se desejada por todos. Deixava que todos sentissem sua pele macia e delicada. Era beijada com delicadeza e sentia as emoções indefinidas de todos que a tocavam. Fora desvirginada pelas carícias do amor. Quase sempre, uma mangueira esguichava água lavando-a das lembranças e deixando-a revigorada para mais um dia de exibição.
Era olhada com inveja pelas outras, que dividiam com ela aquele espaço bem cuidado e cheio de belezas tantas. O chão acolhia as folhas em vertigem e dourava-se lindamente. Nada maculava aquele corpo que já se tornara sagrado. O dia referendava agora as emoções ali vividas. Borboletas bailavam graciosas em harmoniosa coreografia. Ela estava ali, dia e noite a exalar o perfume inexplicável da divindade. Cumpria seu fado com a delicadeza dos que compreendem e aceitam o que lhe é imposto. Conhecera o sereno das noites e os crepúsculos primaveris da existência, onde tudo é mistério.
O homem a cortejava desde que era um botão a desabrochar. Olhava-o sedutor e levava nos lábios o sorriso de quem sabe que vai conseguir ganhar a sua prenda. Esperava por ela assistindo a orgia do tempo, sem incomodar-se. Ela era deslumbrante! De quando em vez tocava-a de leve numa carícia tímida. Receava machuca-la. Todos os dias, ele ia admirá-la numa rotina ritualística e onde respeitosamente resguardava-a para a oferenda dos seus desejos. Tinha-lhe a fidelidade da sacralidade. Estava aproximando-se o dia da grande cerimonia e ele a levaria dali. Era imprescindível viverem antes todos esses momentos. Tudo preparado para não macular o vermelho das suas vestes que tanto chamava a atenção. Ele queria-a mais que tudo.
Chega o grande dia. Ele aproxima-se, e ela, exuberante, não imagina o que a espera. Requebra-se insinuante a espera do carinho costumeiro. Seu perfume tem o incenso cabalístico da sorte. Há olhares românticos, mas nada é improvisado. À gravidade do espetáculo, o tempo emudece lembrando as emoções diárias. Sob a luz do sol a dor geme alumiando a tesoura que lhe corta o caule sem piedade. A existência fenece. Tudo se transforma ao longo do tempo, até mesmo o amor daquele homem que tanto a reverenciou. Ninguém ouviu seus ais mudos. A natureza gritava chorosa, mas era inútil. Ele finalmente a levara.
O silencio do cemitério era um eco triste da vida. Lá estava ela solitária e queimada do calor do dia, a enfeitar a tumba na necrópole. O crepúsculo encontrou-a finalmente. Chorou sobre ela, tristemente, sua dor em forma de gotas de sereno tentando reanimá-la, mas foi inútil. Ela, depois de doação completa está ali ressequida e só. E assim, a bela rosa cumpriu o seu destino. A força do tempo se contrapõe à vulnerabilidade daquela exuberante flor.
Dentro de mim, reinvento-me a cada dia. Escuto os meus ecos. A existência se lavra em inscrições irretocáveis. Até o derradeiro suspiro.
Lígia Beltrão
05/03/2016