FACTOTUM – O Barbeiro da Vila[1]
Coletânea de “causos” comentados no salão de um singular barbeiro, em minha Vila.
Causo 3
Um cliente elegante.
Quando se torna necessário “dar um trato” em sua cabeleira, Fac utiliza-se dos serviços de outro barbeiro, o Toninho, que tem salão nas proximidades. Por sua vez, Toninho periodicamente o visita e, depois de um dengoso cumprimento à deusa escandinava da ala feminina, dirige-se ao salão de Fac, para aparar seu cabelo, sempre desalinhado. O corte de cabelo grátis entre barbeiros é uma cortesia de longa tradição da categoria.
Desta vez, imitando seus clientes, Toninho também tinha um “causo”, que passou a contar:
“Estava eu varrendo o piso do meu salão, quando entrou um cavalheiro, de terno, com uma pasta, acompanhado por um garoto de 13 ou 14 anos, e perguntou-me se eu estava livre para dois cortes e uma barba.
─ Sim, respondi, encaminhando-me para a cadeira. Quem vai cortar primeiro?
O cavalheiro conversou com o garoto, que parecia um pouco amedrontado.
─ Fique tranquilo, é rápido e não machuca. Quer que eu corte primeiro, para você ver?
O garoto concordou e o cavalheiro sentou-se na cadeira.
─ Desde pequeno que ele tem trauma de cortar os cabelos, explicou. Assim, eu faço meu corte e a barba antes; depois o senhor fará o dele, certo?
─ Sim, respondi, já ajeitando a toalha em volta do seu pescoço.
─ Quer ler uma revista?, perguntei ao garoto. Ele aceitou, e o cliente a examinou, certificando-se que não era imprópria para sua idade.
Camarada exigente, aquele! Deu diversas sugestões durante o corte, e pediu até loção importada para após a barba!
Terminado o corte, olhou-se demoradamente no espelho, fez um ar de aprovação e disse ao garoto:
─Viu como foi fácil? Pode cortar sem medo, que eu vou esperar.
O garoto sentou-se na cadeira, e comecei meu trabalho.
Pouco depois, o cliente aproximou-se do menino disse:
─ Está ficando com fome, não é? Espere um momento, que eu vou comprar umas barrinhas de cereais para você.
─ Ele tem hipoglicemia e não pode ficar muito tempo sem comer. Eu vou comprar algo na mercearia da esquina e já voltarei. Deixarei aqui minha pasta, onde carrego meus documentos, carteira e material de trabalho, explicou. Por favor, pode guardá-la em seu armário?
Guardei com cuidado a pasta e o cliente saiu, calmamente. Meia hora depois, eu já terminara meu trabalho, e o cliente ainda não havia voltado. O menino continuava a ler a revista no banco de espera, enquanto eu atendia outro cliente.
“Comecei a ficar incomodado, continuou Toninho. A mercearia ficava bem próxima, já se passaram 40 minutos, e nada do cliente retornar. Por fim, perguntei ao garoto:
─Como se chama seu pai?
─Não sei, respondeu desinteressado.
─Como não sabe?! Onde vocês moram?
─Eu durmo em um banco na praça em frente ao Palmeiras. Nem sei quem é esse otário. Eu estava em paz, fumando um baseado, quando chegou esse cara e disse que eu ganharia um corte de cabelo grátis se viesse com ele até aqui. Só sei isso, babaca!
“Lembrei-me da pasta que o cliente pediu para guardar. Com seus documentos será fácil identifica-lo, pensei. Mas era uma pasta simples, de papelão, e continha apenas jornais velhos. Só então me dei conta do golpe, e resolvi compensar o prejuízo:
─ Fiz dois cortes de cabelos caprichados, gastei tempo, dinheiro e material. Então você faz uma limpeza no salão e ficamos em paz, ok?
─ Eu, varrer seu salão? Vá se catar, otário!
Fiquei furioso, segurei o menino pelo braço e o tranquei no banheiro. A seguir, chamei a polícia, que chegou em poucos minutos.
─ O que aconteceu?, perguntou o policial.
Contei toda a história e o policial ficou pensativo. Por fim, soltou o menino do banheiro, reconheceu-o e disse:
─Aguarde um instante, e chamou-me para o lado, enquanto eu insistia para que ele prendesse o vigarista.
─Eu conheço esse menino. Você está encrencado, meu caro!
─Como? Eu fui a vítima dos dois vigaristas!
─Não é bem assim, senhor! Ele não o ameaçou nem pediu que cortasse seus cabelos. Você tratou tudo com uma pessoa que ele nem conhece. Apesar disso, você queria obrigá-lo a varrer seu salão e como ele recusou, trancou-o no banheiro!
─Sim, mas....
─Eu deveria prender você por violência contra incapaz, constrangimento ilegal, cárcere privado e trabalho escravo!
Antes que eu me recuperasse daquela situação absurda, ele dirigiu-se ao garoto:
─ Esse barbeiro é gente boa, e cortou seu cabelo bem no capricho. Ele lhe dará uns trocados, você volta para a pracinha e esquece o assunto?
─Dez “real”, falou imediatamente o garoto, já estendendo a mão.
O experiente policial fechou o “acordo” e eu dei dez reais ao pequeno delinquente, que piscou um olho para mim e saiu, cantarolando. O policial deu um suspiro de desalento e disse:
─ Ele é “de menor”, senhor barbeiro! A classe mais privilegiada do planeta. De acordo com a lei brasileira, ele tem todos os direitos, mas nenhum dever”.
Assim terminou essa aventura do ilustre Toninho, barbeiro do Barbeiro de minha Vila.