FACTOTUM – O Barbeiro da Vila[1]
Coletânea de “causos” comentados no salão de um singular barbeiro, em minha Vila.
Causo I
O homem do alambique.
─ Bom dia, Fac!
─ Bom dia, Beto. Como de sempre?
─ Sim.
Fac inicia o minucioso preparo do cabelo do cliente, e este começa a contar seu “causo”:
─ Sabe que neste final de semana fui visitar um amigo, o Chico, que tem um alambique de cachaça em Santa Rosa de Viterbo? Que coisa mais bonita: o alambique fica em sua fazendinha, onde meu amigo planta cana de açúcar e faz cachaça para vender no armazém da estrada.
Parte da produção é armazenada em toneis de pereira, guardados em um barracão, em temperatura ambiente. Ali a cachaça permanece por 5 anos, e depois é vendida como cachaça “velha”, com substancial acréscimo no preço. A cor da tal cachaça é semelhante a do caramelo, um pouco mais clara.
Os consumidores afirmam que o sabor da cachaça envelhecida é excelente, menos ácido, enfim, mais agradável, sem deixar de ser forte, como convém a uma boa “pinga”.
O cliente continuou a narrativa:
─ Mas, perguntei ao meu amigo, vale a pena conservar a “pinga” por cinco anos? O acréscimo no valor compensa os custos da manutenção?
─ Bem, respondeu o fazendeiro, na realidade os valores empatam. Mas, como bom brasileiro, sempre dou um “jeitinho”. Nunca perco um bom negócio.
─Como assim?
─ Semana passada, um turista experimentou minha cachaça envelhecida e gostou muito. Perguntou-me se eu daria um desconto para uma compra grande, e eu concordei em descontar 10%. Ele encomendou-me cem garrafas, e eu prometi entregá-las no dia seguinte.
─ Você tinha todas essas garrafas em estoque?
─ Não. Mas não posso deixar de atender um cliente que faz um pedido grande.
─ Como você fez, então?
─ Uma mágica que aprendi com meu bisavô. Eu sei fazer uma cachaça nova ficar com todas as características de envelhecida, inclusive quanto a cor e o sabor.
─ Como assim?
─ É uma explicação longa e não posso contar agora, pois tenho um compromisso, disse o fazendeiro, piscando o olho maliciosamente. Mas se você vier aqui amanhã, eu estarei com mais tempo e contarei. Mas não se esqueça que é confidencial, senão queima o meu negócio e meu prestígio sai arranhado.
Concordei em manter sigilo absoluto do que me fosse contado.
Fac interrompeu, curioso:
─ E qual é o segredo, afinal?
O cliente titubeou, espreguiçou-se e continuou, meio sem graça:
─Oh, vida “marvada”! Eu nem dormi à noite, pensando no enorme segredo que eu ficaria sabendo logo mais. Talvez eu até pudesse explorá-lo comercialmente aqui em São Paulo. Já imaginava um depósito de “cachaça envelhecida 10 anos”, e as moedas tilintando na caixa registradora sem parar...
─ No dia seguinte, logo pela manhã, vibrando de ansiedade, fui até a fazendinha de meu amigo. Que surpresa! Nos arredores de sua casa, uma pequena multidão se aglomerava, todos falando baixo, tristes. Perguntei o que havia ocorrido, e um amigo do fazendeiro, chorando de emoção me contou:
─ Sabe o que aconteceu? O pobre Chico tomou uns goles a mais de sua própria cachaça, comeu quase um pernil inteiro no jantar e depois foi assistir televisão. Meia hora mais tarde, a dona Sebastiana, sua mulher, veio trazer o café, como ele costumava tomar após o jantar. Que tristeza! Ele estava caído no sofá, imóvel. Havia tido um infarto cardíaco fulminante!
O cliente calou-se, cabisbaixo. Frustrado com o final do “causo”, Fac terminou o corte de cabelo, cobrou o valor do trabalho e disse:
─ Então você não ficou sabendo o segredo?
─ Não, respondeu o cliente já de saída. Mas olhe, eu trouxe uma garrafa daquela cachaça envelhecida 5 anos, especialmente para você!
(segue)