FECHANDO OS OLHOS
JAX
A sensação de sono ia e vinha de modo persistente. Áurea não sabia, ao certo, se queria dormir ou se estava cansada. Nem sabia se a noite já chegara ou se ainda havia luz do dia. Na verdade, tampouco isso lhe importava muito, pois nem se esforçou para olhar na direção da janela do quarto. O que queria mesmo era poder concentrar-se em suas lembranças e reflexões. O sono intermitente prejudicava sua concentração, porém.
A exemplo da persistente sonolência, as imagens também vinham e logo se dissipavam, sem permitir que ela chegasse a concluir o exercício de recordar e refletir. Por mais um breve momento, voltou a pensar em Artur. Viu-o como nos tempos de namoro, alegre, comunicativo, cheio de si, a demonstrar seus dotes de violeiro e a desferir comentários críticos e jocosos sobre os mais variados temas, desde as sandices do regime militar brasileiro naqueles duros anos sessenta até as mais simples falhas de administração da nem sempre Cidade Maravilhosa. Áurea continuava a suspirar por Artur e a lamentar o desfecho nada feliz do romance que encheu de sonhos seu coração e teria certamente feito de sua vida algo bem melhor do que foi.
Áurea continuava sem compreender as razões pelas quais o romance de sua vida se desfez. Parentes e amigos diziam que ela era bonita, fato igualmente reconhecido pelo namorado de então nas palavras amorosas que destinava à jovem morena, de cabelos fartos e reluzentemente negros, mantidos sempre um pouco anelados, sem excessos. Gostava de mirar-se no espelho de seu quarto, onde, além da própria imagem, via Artur a abraçá-la e a fazer-lhe elogios enamorados. Tentava lembrar-se, inutilmente, da canção que ele começara a compor para ela. Não sabia mais se fora terminada. Muito menos conseguia reconstituir qualquer das notas que pudessem haver composto aquela canção. As melodias de tantas outras composições que escutara misturavam-se em sua lembrança, formando uma algazarra infernal de dós, fás e ré-sol-lá-sis, em estonteante profusão de ritmos e sons.
As imagens que Áurea buscava ordenar cediam lugar, entretanto, à passagem do carro de boi, lento e rangedor. Lá estava ela, à margem da estrada poeirenta, junto à irmã e alguns primos, a ver o carreiro que espetava os bois na vã esperança de entregar logo, no armazém da cidadezinha próxima, a pesada carga de sacas de arroz em palha. Essa recordação do passado continuava a incomodá-la. Era capaz de sentir a coceira que causava o arroz em palha e de sofrer os horrores que pareciam vir juntos naquele carro: o desagradável odor da bosta de boi, o contato repugnante das moscas, besouros e demais insetos que infestavam a roça, a luz fraca das lamparinas que torturavam seus olhos ao fazer os deveres da escola em casa, a ladainha das rezas vespertinas, puxadas pela avó, e o lameiro que tinha de percorrer a pé com dificuldade a cada chuva mais forte. Fechou os olhos com raiva dessas lembranças.
A irmã entrou súbito no quarto. Ou teria sido nas divagações de Áurea? Pouco importava! Lá iam as duas alternar momentos de fraterna conversação e de intermináveis discussões, a trocar críticas sobre o respectivo comportamento. No instante mais ácido da discussão em torno de uma desgastada escova de dentes, ou de cabelo, apareceu o primo Tiago, que buscava reintroduzir a paz entre ambas. Áurea desconfiou, contudo, daquela intermediação. Não demorou e o primo tomou partido da irmã, acrescentando outras críticas às que já havia escutado. Teimavam em dizer que ela vivia fechando os olhos à realidade. Azar o deles! Novamente fez como que não era com ela. Os dois cansaram e saíram da cena.
Tiago voltou logo a seguir. Já não era adulto, mas sim o menino para quem Áurea lia contos de fadas e outras histórias em tempos longínquos da memória. Gostava muito do primo. Achava-o esperto, imaginativo. A amizade era tamanha que adotaram nomes fictícios, aprendidos nos contos de então, e tratavam-se dessa forma. Mir e Ilin! Mir e Ilin! Soaram em sua mente os nomes, quase esquecidos, que agora ela também via estampados na parede do quarto. Tiago, menino ou adulto, deveria ter escrito esses nomes ali sem que ela visse. Não sabia se ele o fizera como recordação da velha amizade ou por puro deboche.
Tanto tempo se passou e continua a passar. Áurea insistia em ver-se jovem. Lutando contra a sonolência, fazia enorme esforço para rever-se assim, ainda com muito tempo diante de si. Procurava convencer-se de que ainda viria a encontrar o amor de sua vida, casar-se, refazer sua existência incompleta e truncada pelas imagens desconexas que tentava decifrar. A mãe, o pai, o padrasto, tias, tios, primas, primos, vizinhos e amigos sucediam-se na memória, mas sem trazer o alento e as respostas que ela desejava encontrar. Só repetiam aquela tolice dos olhos fechados à realidade.
Refazer a vida era certamente o que mais queria. Com ou sem Artur, que naquele momento não arredava pé de junto de seus amigos, nem deixava o violão de lado. Áurea não conseguia definir o emprego perfeito para recomeçar. Na verdade, nem estava segura de querer trabalhar de novo. As desilusões foram muitas. Sentiu-se prejudicada, injustiçada por patrões, colegas de escritório e por muita gente mais.
A luz no quarto parecia reduzir-se um pouco. Devia mesmo ser tarde. Percebeu sua adorada sobrinha-neta que corria em sua direção, preocupada com o tombo que levara. Junto com a menina corriam os pivetes que haviam jogado Áurea no chão e roubado sua bolsa. Estava misturando diferentes tombos em diversas épocas, no entanto. Também pudera! Haviam sido tantos os tombos que tomara, física e espiritualmente, que era fácil misturá-los e confundi-los. As recordações das dores experimentadas nessas quedas também se mesclavam, fazendo com que as sentisse quase ao mesmo tempo, nos seios, nos braços, nas pernas, pescoço, cabeça. Possivelmente já estava a misturar suas dores com as diversas dores de que se queixavam sua irmã, a avó, a mãe e tanta gente sofrida que cruzou sua vida. Continuava a achar, todavia, que as suas eram maiores.
Ficou em dúvida se seu corpo doía por mero efeito das lembranças de tantas dores ou se deveria levantar-se e tomar um analgésico. A sonolência pesava demasiado em sua vontade, contudo. Permaneceu deitada, os olhos e o pensamento a percorrer o teto e as paredes, onde se projetavam, cada vez mais tênues, as imagens e lembranças que procurava reconstituir. O sono foi aumentando e, à medida que os olhos se fechavam, certa sensação de paz enfim acompanhou o tombo derradeiro de Áurea.
In Ibitinema e Outras Histórias (2016), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP