Perfeição
Eu que, tantas vezes, como Pessoa[1]
Sou apenas uma pessoa
Comum, indisposta, impaciente.
Presa as árvores como orquídeas parasitas
Esperando, cansada, as gotas da chuva.
Deitada nos tapetes persas olhando as etiquetas pagas.
Eu que, outras vezes, me canso de falar
Sem tempo para...
Violetas nas janelas
Era sempre assim
Chegava feliz, miúda, adornada de flores
Flores pequenas, mimosas, alegres, dispostas
“Lindas de viver”, falavam repletas de sorrisos, as vizinhas.
Nas janelas abertas (ato proposital) sobre o beiral
Várias violetas vigiavam o sol
Também vigiadas pelo...
OLHARES
Que me venha estes olhares.
Felinos ou não.
Miúdos, finos.
Brotando das treliças de madeiras que, pacificas, sustentam:
cachos fartos, ralos, graciosos, ásperos, doces, azedos, agridoces, pesadas roseiras.
Rosas, mil cores, mas sempre rosas.
Sopra o vento.
Antônimo, ...
ÓRFÃOS
Não quero ser aquela que desmonta a mãe pátria.
Cama desfeita pela manhã.
Lençóis marcados de suor.
Dela arrancados.
Dobrados, lavados
A beira dum riacho plácido
Desmonta-se a flâmula
O riso quando frouxo
Restando a lágrima fixa
Nas mascaras de Pierrô.
Oh, quanta alegria!
Mais de mil...
PARATY
Nesta terra
Feita de séculos e séculos
Calhou a ti ser Paraty
Para mim, para todos nós.
Ruas de pedras batidas
Ontem apoiavam o trotar
De quem não tinha pressa
Cocadas, doces, raparigas.
Suspirar lento, bordado nos lenços.
Desenhos que, hoje, a máquina faz.
Mil e seiscentos,...
FITAS
Rasgaram-se em pedaços
Formatos de tiras
Acenando coloridas
Agarradas nas madeiras
Palafitas
Erguidas com o coração
Tronco. Pilar da existência nua.
Cujas lágrimas
Marcadas nas chitas
Tecido de algodão
Tramas simples
Desceram com as águas
Que subiram nas cheias
Molhando a madeira,...
MARITACAS
É tão solitário andar entre “as gentes”
Vaivém frenético de andarilhos bem vestidos
Passos apressados
Um querer não querer
Um fazer sem receber
Um falar que destoa
Mia, engasga.
Pensar descosturado
Feito retalhos, trapos, fiapos
Chega à chuva
Tão miúda!
Tão chata a cair fina sem...
FACA
Faca, amolada, corta. Rasga, fere, enterra.
Separa o trigo debulhado lançado ao chão.
Afiada, desatinada, brincando cega com alimentos postos em bancadas.
Eita faca cravada!
Eita sorriso de mil bocas alimentadas.
Vontades divididas, desiguais a contar
Verdades que não nos interessa...
Foto:Thomas Hart Benton
COLCHA DE RETALHOS
Colcha longa, feita de retalhos diversos. Reunião de peças de tecido, várias cores, padrões e formas, costuradas entre si, formando desenhos geométricos.
Do meu assento, cadeira gasta, a luz do sol sem cerimônia entrava pela janela aberta. A cortina...
O Som do Silêncio
A neve mastigava os passos.
Choc, choc!
Ruído constante deste acumulado branco, frio. Tudo coberto de neve.
Sem descanso, caminhei só sob a neve. Levantei a lapela do casaco para me proteger, porém monstros se agigantavam contra um corpo...
CALÇADÃO
Nos calçadões das praias, as ondas escuras, pedras, seguem paralelas as ondas do mar.
Vou, como dizia Caetano, sem lenço, sem documento, nada no bolso ou nas mãos, pois não preciso.
As coisas sagradas, amadas e profanas trago no corpo, na alma e no coração.
Tantos...
VAGALUME
Não me faço noite.
Assim, não aborreço as estrelas.
A cobrir-me, ao noturno, com o manto da claridade.
Cá, embaixo, bolas de espanto.
Curvo-me!
Admirada, miro o brilho distante
Elas, feitas diamantes, esferas de plasmas, grandes, luminosas e oferecidas
Ficam a lambuzar o céu, tendo...
TIC-TAC
Assim canta o relógio carrilhão.
Ele é europeu; alemão de Berlim.
Fabricado no século XIX. Hoje, vivo, está há contar o tempo.
Marcado, cadenciado. Tic Tac sussurra satisfeito.
Engrenagens lustradas, conservadas, preciosas, delicadas.
Em forma!
Esta coisa inanimada ocupa...
NASCER
No sorrir mora uma infinidade de hábitos
Recolhidos, nos gestos, de quem ensina sem perceber.
Som do riso; tempero
Do barulho da chuva a se perder nos tetos
Que nos cobre das gotas grossas das águas a descer do céu.
Vejam os raios. Ouçam as tempestades
É a vida a contornar o rio:...
VERBO
Verbos pupilas dilatadas
Bocas molhadas transitam completos.
De sonetos, doces encantos de amor..
Memórias, vento.
Intransitivo
Sem complementos
Sem palavras
Sozinhos.
Em todas as ações se desnudam almas.
Completam dias
Brilho das manhãs
No faiscar do sol que incendeia
Conjugando...
MAR AGITADO
Que mar agitado!
Neste agito de hoje assobia o preamar.
Acaricia a areia; faixas inteiras, movendo e removendo-as para lá.
Olhem as espumas!
Como sussurram
Cuspindo espumas na orla do teu manto, pobre canto!
Orlas desfeitas pela próxima onda, ressaca.
Olhos de ressaca, Capitu,...
As ruínas e o cão
- Primeira lição da vida, Rafa. – disse o pai, ressentido com a dor do filho. - Palavras podem ser costuradas, alinhavadas, torcidas e retorcidas, pontilhadas e, finalmente, rasgadas. Rasgue-as! Passe uma borracha nesta folha de papel.
Você amará outras vezes e de forma...
Imagem: "lavrador de café" de Portinari
Moendo Café
Sobem grãos. Descem.
Grãos abençoados a pulular com o açoite do pilão
Nas zonas rurais, frutos caem no chão.
A música toca. O povo dança
A água ferve.
O sol arde, reluzindo...
TIRAR O PÓ
É tão bom poder tirar o pó daquelas peças que fomos recolhendo por todos os lugares que passamos.
Na medida em que se passa a flanela, colocamos todas as coisas no lugar.
Voltamos para os lugares onde a compramos. Do sorriso da atendente ou da cara mal humorada. Do idioma...
DIFERENÇAS
Que me venha este olhar.
Felino ou não, mas disposto a enxergar coisas miúdas, finas, diferentes a brotar das treliças de madeiras que, pacificas, sustentam cachos fartos, ralos, graciosos, ásperos, doces, azedos, agridoces daquelas pesadas roseiras: rosas, mil tons, mas sempre...
MANEQUIM
Lá estavam todos. As ruas apinhadas de pessoas que, apressadas, iam e vinham, tomando contas das ruas, calçadas e vitrines.
Alguma coisa do tipo: “Da dura poesia concreta de tuas esquinas. Da deselegância discreta de tuas meninas”, expressão cantada por um novo baiano que, como...
Boa Noite!
Noite: esta que se instala de mansinho sobre o céu caprichoso, após os dias de azul cerúleo e que se repetem nas quatro estações. Quatro estações de Vivaldi, de calor, frio, flores e brotos.
Ela, dominada pela lua e cheia de verão, vai somando dias, contando anos, vigiando nossas...
RETRATO
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão...
“Outras vezes oiço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido”. Poemas Inconjuntos. In Poemas de Alberto Caieiro-Fernando Pessoa.
VENTO
Sopra enfurecido o vento.
Mexendo e remexendo pétalas macias.
Algumas resistem aos açoites da nervosa...