Lembranças - por Lígia Beltrão

Lembranças - por Lígia Beltrão

    Lembranças

 

                 Hoje, parei no tempo e fui até o meu eu, adormecido nas lembranças da vida. Vi a menina inocente, que corria pelas ruas da infância, engolindo a brisa dos entardeceres, sendo beijada pelo vento fagueiro, que acariciava meus longos cabelos negros, soltos e desgrenhados, gritando a peraltice das horas.

                Corria, com o tempo me chamando para viver, tentando segurar entre as mãos, o mundo inteiro. Dentro do peito, sonhos brigavam entre si, não sabia qual deles, era o maior. Eram tantos...

               O tempo passou, veloz e impiedoso, fez-me quase espectro de mim mesma. E a canção descompassada da vida, virou a trilha sonora dos incontáveis dias, que seguiam seu compasso alucinado, sem lembrarem-se de olhar para trás.

              Desejos afloraram no peito sonhador e fizeram-se, não sei por que, esquecimento. Fui fazer meu jardim, finalmente, em outras bandas, pois queria colher flores e perfumar meu caminho, tirando-lhe as pedras, aqui e acolá, que teimavam em amontoar-se na travessia dos tempos.

             Cuidei dos meus pássaros e vi a vida, esgueirando-se, como a sentir medo do que viria. De olhos fechados, conquistei o mundo. O meu mundo. Não foi o bastante. Perdi-me de mim mesma.

             Fiz-me então, um insondável poço, no qual mergulhei todos os meus desejos e afoguei os sonhos, que me atrevi, um dia, a sonhar. Aquela menina, estava crescendo e se perdendo, dentro do emaranhado da sua alma. Desconhecia a si própria.

            Foi-se o tempo. Foram-se os sonhos. Estocados talvez, em algum cantinho escuro do passado, arranhando de quando em vez, o coração fustigado. A vida seguiu seu curso, inexorável, na incerteza das coisas. Como ir em busca daquela criança, que corria feito nuvens, num céu de esperança! Como reencontrá-la dentro de tantos eus e de outros tantos ais, adormecidos, cansados de incontáveis soluços, engasgados na garganta e presos no peito dorido.

           Sou lembranças. Lembranças de tempos idos, a perderem-se de vista, brincando de ser criança outra vez. Impossível?! O tempo passou e não volta mais. A história agora, precisa ser lida diferente.

           Lá dentro, bem dentro de mim, ouço o riso escancarado, da minha criança interior. Nem tudo está perdido. Procuro a luz que brilha, cintilante e grandiosa, acordando esse meu lado grandioso, de belas histórias não vividas, de muitos sonhos a contar. Vislumbro alguns. Creio que ainda dará tempo de conquistar um aqui, outro ali, e de repente, ver minha vida refazendo-se. Gritando alegrias guardadas e felicidades acumuladas. Vou buscar, agora, tudo o que tenho direito. Resta-me pouco, mas, multiplicarei e deixarei, finalmente, todos os meus eus aflorarem. Sou múltipla. Sou sonhos. Sou a realidade das lembranças

 

Lígia Beltrão

 

 

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