O Refúgio
Capítulo 1
O lupanar do Lago Tiberíades[1].
Estamos na esteira dos anos 20, da Era cristã, às margens do lago Tiberíades, também chamado de Genesaré, na faixa costeira da Galileia. Nessa região, à noitinha, a “casa de prazeres” denominada O Refúgio, conhecido prostíbulo instalado no vilarejo de Naim[2], parecia trazer novo compasso à vida enfadonha dos moradores da cidade e das vilas próximas. Situava-se em local de fácil acesso, próximo às rotas comerciais, e oferecia músicas alegres, danças, bebidas e belas mulheres.
A clientela habitual era seleta; entre seus usuais, contavam-se prósperos comerciantes, fiscais de trabalhadores da terra, coletores de impostos[3], e viajantes, que faziam negócios na região. Essa classe de clientes recebia tratamento diferenciado e atenções especiais, compatíveis com as altas somas que despendiam. Eram recebidos também, com menos euforia, legionários romanos desfrutando folgas ou licenças, pois a dura disciplina do dia-a-dia não lhes permitia tais benesses. Não raro, procuravam-na alguns homens do mar, especialmente quando comemoravam uma pescaria generosa. Estes, muito supersticiosos e geralmente pouco dispostos a dispêndios maiores com o “pecado”.
A casa possuía amplas instalações, iluminação discreta e decoração aconchegante, sugerindo intimidade e grandes prazeres; era limpa e ordeira, salvo raros desentendimentos entre as “funcionárias” e um ou outro “cliente” não totalmente satisfeito, o que logo era resolvido sem maiores danos.
Sua proprietária era Esther, de Betúlia[4], mulher bem conservada e elegante, beirando seus 30 anos, e que dirigia com mão de ferro o empreendimento, fiscalizando a “produção” das meninas, visando, mui especialmente, seu lucro. Não descurava, porém, de regras básicas de higiene, e exigia banhos de sabão e ervas aromatizantes, tanto das prostitutas como dos clientes. O uso desses produtos era, evidentemente, pago pelos usuários dos serviços.
Como atividade pessoal, atendia somente a clientes selecionados, seus conhecidos de alguma data, dos quais extorquia consideráveis somas de dinheiro, a pretexto de ser exclusiva. Não estava disponível para a clientela comum; isso ficava a cargo de suas “meninas”, as quais tinham, por chefe imediato a amável Túlia, uma bela jovem galileia, que demonstrava cordialidade e grande maturidade em seu procedimento.
Entre as meretrizes havia, também, uma jovem núbia, conhecida por Aby[5], descendente de um antigo senhor do reino africano de Kush[6], que fora assassinado por emissários diplomáticos do Faraó do Egito, alguns séculos antes. Diante da perseguição política que se seguiu, a família ancestral de Aby se refugiou em uma povoação no sul do Egito; depois, seguiram viagem até a Galileia, onde se estabeleceram, anônimos, até seu nome desaparecer da história. A jovem negra, remanescente do antigo tronco real, encontrou-se desamparada após a morte de seus últimos parentes, e foi acolhida por Esther, que pressentiu, na beleza exótica da moça africana, um atrativo a mais para sua casa, e uma fonte maior de renda.
Esther era originária de uma família de humildes trabalhadores da terra, explorados até a medula pelo senhorio. Quando nasceu a menina, sua mãe chamou-a de Esther, em homenagem à heroína hebreia que, segundo a história, conquistou as graças do rei Assuero da Pérsia, encantando-o a ponto de nomeá-la para substituir, na Corte, a rainha Vasti, esposa de Assuero, acusada de ousar desacatá-lo em público. A mãe de Esther intuiu que a força desse nome teria grande influência na vida de sua filha, levando-a a grandes empreendimentos e fortuna.
Esther tinha um irmão, de nome Lúcio, alguns anos mais novo. Os pais de ambos faleceram ainda jovens, e coube a ela cuidar do irmão menor, como se fosse seu próprio filho.
Como exceção à regra da época, Esther conseguiu adquirir alguma instrução; sabia ler, escrever e fazer contas. Também havia lido, embora parcialmente, os principais textos das Sagradas Escrituras e acreditava, esperançosa, na vinda do Messias. Aprendeu as técnicas da coreografia sacra, desejando tornar-se dançarina e dedicar-se ao serviço religioso. Porém, seu corpo, privilegiado em beleza e suavidade, exacerbava a lascívia dos mestres dos serviços do Templo (talvez também dos frequentadores), os quais, a pretexto de orientá-la nos misteres das danças sagradas, aproveitavam-se da inexperiência da adolescente aprendiz, e davam vazão à sua concupiscência.
Durante os ensaios, a jovem viu-se constantemente assediada e várias vezes violentada por seus instrutores. Inutilmente pediu proteção aos altos dignitários, que lhe negaram qualquer apoio, insinuando, zombeteiramente, que talvez ela os tivesse estimulado.
Desiludida, juntou-se a um pequeno grupo de dançarinas, também descontentes e temerosas, pelos mesmos motivos que ela, e resolveu montar seu próprio negócio. Portadora de dotes naturais de liderança, formou, com as outras mulheres, um grupo de meretrizes selecionadas, orientou-as quanto à higiene e trato com os clientes, organizou as atividades da casa, que passou a chamar por “O Refúgio”, planejou a contabilidade do empreendimento e, naturalmente, reservou-se a parte melhor.
Assim, a bela jovem e suas companheiras, que desejavam entregar-se ao serviço religioso, foram impelidas ao meretrício pela conduta pecaminosa dos altos dignitários do Templo, que se arrogavam mandatários de Deus.
Esther sentia por Lúcio, seu irmão mais novo, um profundo amor fraternal e, dentro de suas possibilidades, custeou os estudos do menino, estimulando-o a desenvolver o que ela considerava um dom: a poesia. Às vezes, extasiava-se com seus versos e acreditava que um dia esse talento poderia levá-lo a uma posição de destaque nas Cortes, pouco importando se estas fossem nativas ou usurpadoras[7].
Lúcio convivia harmoniosamente com sua irmã, e tinha contato frequente com as “meninas” da Casa, mas não sentia nenhuma atração por elas. Seus pensamentos viajavam da poesia aos jovens pescadores da região, pelos quais sentia indisfarçável inclinação carnal. Era um homem e preferia contatos íntimos com outro homem. Tradicionalmente, esperava-se que ele se interessasse por mulheres, segundo o padrão hétero dominante na cultura em que fora criado.
Mas isso não ocorria, e ele sentia-se angustiado, diante da indefinição de sua sexualidade não direcionada. Esther compreendia os sentimentos do irmão e o aconselhava a aceitar-se como ele era, a viver a vida como ela se apresentava e, sobretudo, procurar ser feliz.
Assim, a vida seguia relativamente calma e tranquila, nas margens do histórico lago, cada segmento da população exercendo seu papel, na pacata sociedade local.
Mas havia prenúncios de turbulência iminente. A opressão do Império Romano sobre a Galileia tornara-se insuportável, e já se ouviam vozes clamando pela libertação do povo eleito do Senhor, então sob o jugo romano. Igreja e Estado confundiam-se em uma única e malformada estrutura, viciada por interesses pessoais dos dirigentes de ambas as facções.
Apesar do panorama aflitivo, ainda restava a esperança bíblica do Messias, que libertaria o povo de Israel, e o conduziria a novas eras de paz e prosperidade. Não raro surgiam profetas, anunciando a chegada iminente do Salvador. Outros, mais ousados, apresentavam-se como sendo o próprio, conseguindo iludir as massas por algum tempo, insuflando esperanças desarrazoadas, para obter proveito pessoal. Quando finalmente desmascarados, os farsantes empreendiam fuga; às vezes logravam êxito e escapavam da fúria do povo enganado; geralmente, porém, sucumbiam, justiçados por seus antigos adoradores.
Mas, a cada acontecimento frustrante, a vinda do Messias parecia mais remota, distante da promessa contida nos textos sagrados, e da fala dos antigos profetas. Somente o povo mais humilde, por absoluta falta de opções, ainda mantinha alguma esperança de libertação. (Fim do capítulo 1)
NOTA: O romance O Refúgio encontra-se disponível na Livraria do site Divulga Editor: https://www.divulgaescritor.com/products/livro-o-outro-autor-mario-de-meroe-comprar/
[1] Lago de Tiberíades e Lago de Genesaré são antigas denominações do Mar da Galileia, onde deságua o Rio Jordão. Consta ter sido rico em peixes.
[2] Naim: pequena cidade da região da Galileia, nas faldas do Monte Tabor, vizinha de Cafarnaum e próxima a Nazaré, lugar onde Jesus passara sua infância.
[3] Os coletores de impostos da época eram denominados publicanos. Há mais notas a respeito.
[4] Pequena cidade da antiga Palestina, onde, em épocas remotas, radicou-se a tribo de Zabulão. A cidade reverenciava uma heroína de nome Judite, jovem hebréia, que para salvar a cidade das hostes de Holofernes, general de Nabucodonosor, rei da Caldéia, seduziu o general e o degolou enquanto este dormia.
[5] Diminutivo carinhoso de Abissínia, apelido relacionado, indiretamente, com sua etnia.
[6] Outra Grafia: Cuxe. Esse reino também é conhecido, historicamente, como império de Méroe ou, mais modernamente, como Núbia, localizando-se ao sul do Egito. Essa extensão de terra, denominada Etiópia pelos geógrafos antigos (não se trata da atual Etiópia), hoje é ocupada pelo Sudão.
[7] Na época, toda a região da Galileia encontrava-se sob o domínio do Império Romano.
Publicado em 21/03/2014