MEMÓRIAS DE LEITURA
Mirian Menezes de Oliveira
Resgatar “memórias de leitura” é como injetar cores nas sombras da mente... ressuscitar entes queridos que, com seus atos de leitura, moldaram nosso “ser de letras” (fanático e deslumbrado pelos livros).
Minha vivência leitora teve início muito cedo... Lembro-me de meu pai, abrindo o jornal todo dia; desligando-se do mundo e das pessoas. Lia tanto que, às vezes não ouvia a pergunta:
_Pai, o que você está vendo?
Quando tinha sorte, ele me explicava o que havia no jornal: uma infinidade de letras e textos que falavam sobre o mundo e sobre as coisas. Minha fascinação pelo universo e pela ciência, por exemplo, teve início nos diálogos furtivos, travados com meu pai, que me falou, um dia, sobre Eistein (Tinha sete anos nessa época!).
Claro que não entendi o conceito como deveria. Entendi do meu jeito... Mas uma semente foi plantada! Meu pai não teve a intenção de me dar uma aula sobre a teoria da relatividade, mas conseguiu me explicar a infinitude contida no “Universo das letras”.
Este é apenas um exemplo de meu ritual de iniciação. Para mim (pequena leitora!), a leitura já se prestava a diversos objetivos... até mesmo o de confirmar ou não minhas hipóteses infantis sobre o mundo.
Por que digo isso?
Porque ao consultar minhas lembranças, uma forte imagem me veio à mente...
Graças a Deus, cresci em uma casa com quintal (repleto de plantas!) e essas plantas eram minhas melhores amigas... tão amigas, que conversava com elas! A princípio, meu pai achava aquilo um delírio, até que, certo dia, leu no jornal que alguns cientistas realizaram pesquisas com plantas e descobriram o poder das palavras e do carinho, em seu crescimento e desenvolvimento. Pronto! As palavras contidas naquele trecho do jornal legitimaram meus atos de cientista-mirim. Que poder o das palavras!
Esses são apenas alguns exemplos de minha iniciação na leitura. Preciso destacar a forte presença masculina nesse período de descoberta, embora minha mãe (Ainda vivinha da Silva! Graças a Deus!) também contasse histórias, às vezes, com auxílio de discos de vinil.
De todos os que passaram pela minha vida, meu pai foi o “leitor compulsivo”, aquele que não dispensava uma leitura, nem mesmo na hora das refeições: apoiava os livros, em garrafas de guaraná “caçulinha” e lia sem parar. Tenho que concordar que esta atitude gerou discórdia em alguns momentos.
Tantas são as lembranças desse passado remoto e presente, que se torna difícil recapitular os principais autores que compuseram minha vivência leitora. Lembro-me de cores, cheiros, texturas, imagens em preto e branco; uma série infindável de letras de todos os tamanhos e formas: a “Enciclopédia das grandes invenções de descobertas” (capa vermelha e com cheiro de mofo); um belo exemplar do Anuário do Jornal do Brasil de 1925; revistas femininas.
Quantas cores! Que multiplicidade de sensações!
Minha construção enquanto leitora sempre foi permeada pela diversidade, e por situações, aparentemente, contrastantes, envolvendo objetos e pessoas. Apesar de não fazer parte da alta sociedade, convivi com riquezas inigualáveis: muitos papéis, portadores de textos e seres humanos, completamente, diferentes e ricos em ideologias e experiências.
Voltando às memórias... em minha vida complexa e repleta de contrastes, meu avô materno também exerceu influência marcante em meu comportamento leitor... não porque lesse livros! Afinal de contas, era analfabeto! Meu avô era um exímio contador de histórias e, apesar de não ler as letras, atribuía grande valor à leitura e à escrita, lamentando não poder escrever as histórias que contava. Não raras foram as vezes em que me confidenciou essa frustração. Enfim, o exímio contador de histórias me contava “verídicas” histórias de assombração. Tão variado era o repertório, que toda noite me surpreendia com um fantasma diferente, surgindo debaixo de minha cama.
Por essas e outras, posso me considerar uma pessoa privilegiada, pois fui criada não com riquezas materiais, mas com riquezas “humanas”.
Quando peguei, pela primeira vez, o livro de contos do 4º ano primário de minha mãe, abri-o com propriedade, inventando uma história qualquer em minha cabeça. Nesse momento histórico, meus pais e avós maternos me aplaudiram, elogiando minha postura leitora, abrindo uma brecha, pela qual escapuli e nunca mais voltei: a brecha que me conduziu ao “universo da leitura”. A partir daí, nunca mais parei de inventar histórias e de mexer na pequena estante de livros de meu pai, limpando e manipulando aqueles objetos preciosos. Pensava sempre: “Um dia, trabalharei somente com livros. Essa é a profissão que desejo para mim!”
Com minha inserção no universo escolar, houve um considerável “alavancar” em meu interesse pelo universo da leitura. O primeiro e inesquecível livro, que compôs meus materiais de mochila, foi uma cartilha “Caminho suave”, que minha mãe fez questão de encapar com papel celofane rosa. Que maravilha era aquele livro tão brilhante e diferente dos demais livros de meus coleguinhas. A cartilha brilhava e me encantava, principalmente, pelo desconhecido que ela portava. Eu não sabia ler as letras, mas lia todo um contexto, que envolvia aquele material. Nessa altura do campeonato, já dá para perceber o quanto sou sinestésica e aproveito todos os sentidos, em minhas leituras.
A partir de minha alfabetização e de minha extensa vivência escolar, parti dos discos de vinil, para a leitura de: contos maravilhosos, fantásticos, de biografias, de revistas sobre ciências, sem falar dos clássicos. Lembro-me de uma obra que falava sobre a vida de Santos Dumont. Apaixonei-me por essa personalidade visionária e, a leitura da biografia motivou-me a sonhar com balões e aviões. As biografias passaram a fazer muito sentido para mim.
Na adolescência, lia, com muito prazer, clássicos que “arrepiavam” meus colegas, pela complexidade de estrutura: “Memórias Póstumas de Braz Cubas”, “Dom Casmurro”, “O Cortiço”, “Vidas Secas”, “O crime do Padre Amaro”, “Morte e Vida Severina”, “O Guarani”, “A mão e a luva”; contos como “A cartomante”, “Missa do Galo”.
Parece difícil de acreditar, mas textos como esses sempre me fascinaram!
Das obras mais modernas, lembro-me de “O grande mentecapto”! Nossa! Como posso listar tantas obras brilhantes que passaram por minhas mãos e olhos? Difícil listar, entretanto citarei alguns escritores.
Machado de Assis tornou-se um de meus autores prediletos. Por incrível que pareça, moro em uma rua com esse nome (pura coincidência?). Enfim, Machado de Assis tornou-se um ícone para mim, pois eu me identificava com as misérias humanas, retratadas em seus livros. Devo ressaltar que o autor realista, tornou-se “um de meus autores prediletos”, porque seria injusto, de minha parte, a predileção por um único autor.
Amo Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Mário Quintana, Vinícius de Morais, Khalil Gibran, Fernando Pessoa e uma infinidade de outros autores clássicos e modernos, que não citarei, no momento, para não cometer a injustiça de suprimir talentos. Amo muitos autores e todos se constituem em referenciais para mim. Citei, primeiramente, Machado de Assis, porque, realmente, ele sempre me encantou e fiquei fascinada com a dedicatória do livro “Memórias Póstumas de Braz Cubas”: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu corpo dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”
Meu Deus! Que autor é esse que dedica seu livro a um verme?
De fato, Machado de Assis não era qualquer autor; ele possuía algo especial que, até hoje, encanta os leitores e os instiga a pensar sobre a realidade e sobre os sentimentos que, muitas vezes, são camuflados, em nome do “politicamente correto”, da sociedade coberta de “aparências”. Grande Machado de Assis!
Outro autor que posso considerar, como um grande “desbravador de almas” é Graciliano Ramos. Autor instigante! Ao ler “Insônia”, perdi o sono; ao dissecar “Angústia”, senti-me aflita e desconfortável e, ao entrar em contato com “Vidas Secas”, senti minha alma enrugar-se e rachar-se, como o solo do sertão nordestino.
Ufa! Nesse recordar sem fim, já não sei quem construiu este meu “ser de letras”: seres humanos e personagens do universo fictício misturaram-se e misturam-se num enredo prazeroso e maluco.
Minha história não tem fim! Grande descoberta!
Minha compulsão por livros deve-se a muitos fatores, igualmente, importantes: à família que tive, aos livros que passaram e passam por mim, frequentemente, e por tudo o que consigo ler, diariamente, utilizando-me de todos os sentidos, afinal de contas sou um ser sinestésico: leio com os olhos, com as pontas dos dedos, com o olfato... Sou leitora! No discorrer dessas memórias, sou capaz de me “delinear” e... quanto ao desfecho... repleto de reticências... como minha vida... O desfecho é previsível e não tão difícil de deduzir: transformei-me em uma “ratinha de bibliotecas” e, hoje em dia, a leitura é meu “pão de cada dia”. Muito obrigada, família! Agradecida, livros que compuseram e compõem minha vida!