Meus Complexos e Traumas em Cinco Atos (BULLYING) Por SILVA NETO
SEGUNDO ATO:
...(Continuação)
...Enfim as férias de junho chegaram. Estava muito contente em voltar à minha Cidade. Visivelmente esbelto, pele mais clara e acentuada, rosto corado, esbanjava saúde e, o mais importante, tinha crescido alguns bons centímetros pelo que podia observar ao medir-me toda semana. Até achava que Raquel estivesse ao máximo do meu tamanho.
Meu pai chegou para levar-me. Que contentamento! Ele estava visivelmente orgulhoso de seu filho estudando para Padre. Foi logo me elogiando:_ OH! Meu filho como estás grande e bonito? Aquilo me encheu de orgulho. Um elogio assim há muito, não recebia.
De volta a Catende houve uma festa em família. Chegava o seminarista todo diferente, polido, educado. _Como pôde mudar assim em tão pouco tempo, diziam uns. Até cresceu! Outros falavam. _ Se esse daí for Padre eu vou ser Freira! Falavam outros, brincando...
Eu fui para as férias na minha cidade com uma incumbência, dada pelo Padre Superior, assistir à missa todos os dias usando batina.
Era hilário!...Aquele toquinho vestido de preto a caminho da igreja pela manhã. A vergonha chegava a mil quando as meninas passavam por mim, no caminho da Igreja, diziam: _Que Padre lindo? Tinha vontade de sumir!
E Raquel?...Onde estava àquelas alturas? Não a via desde o dia em que cheguei de férias. Estava ansioso!
Fui à Biblioteca Municipal uma tarde. Lá chegando, cumprimentei a bibliotecária, D. Lia que ficou surpresa com a minha chegada. Ela me conhecia de antes, pela frequência que mantinha em ler e emprestar livros daquela biblioteca municipal. Conversamos um pouco, sentando-me, em seguida, para ler um livro. Não tardou escutei: Boa Tarde! D. Lia. A voz era tão suave que emudeci. Estava de costas e a reconheci pela voz. Alheia, ela se dirige para o meio do recinto, busca um livro na estante e pede licença para sentar à mesa sem me reconhecer. Levanto a cabeça, fito-a, o rosto vermelho de emoção. Ela empalidece, seus olhos crescem mais ainda com um princípio de desmaio. Levanto-me e seguro-a pelos ombros, sentando-a suavemente à cadeira. Ela se refaz do susto aos poucos...
Passamos a tarde inteira conversando, rindo baixinho. Não podíamos conversar alto na Biblioteca. Ela estava uma moça, bem mais alta que eu com apenas dez anos. Não tive coragem de seguir com el. Minha vergonha foi a pique! Fiquei ali sentado sem coragem de me levantar até que ela foi embora.
Essa foi à última vez que nos falamos.
Retornei das férias no final de Julho. As aulas reiniciavam em Agosto e a vida monástica também.
No Mosteiro tinha vida regrada, horário para tudo a começar pelo início da manhã. Era uma rotina tão bem cumprida que ficou gravada em minha mente por vários anos, mesmo após deixar aquela Ordem Religiosa.
Acordávamos às cinco e trinta da manhã, fazíamos a higiene matinal com banho obrigatório quer o tempo estivesse quente ou frio. Em seguida, vestia a batina por cima da roupa e descíamos para assistirmos à missa das seis e trinta na capela. Após a missa íamos ao refeitório para o café da manhã, até então em silêncio, denominado SILÊNCIO NOTURNO. Esse (silêncio) começava na noite do dia anterior com o toque de recolher. Subíamos para o dormitório, fazíamos nossa higiene antes de dormir, totalmente em silêncio. Havia um Reitor a vigiar-nos para não quebrarmos o Silêncio, só permitindo cochichar no ouvido do companheiro caso necessitasse pedir alguma coisa emprestada, como por exemplo: pasta de dentes, sabonetes, etc. Se alguém conversasse desnecessário descia para a sala de estudos de castigo, onde permanecia por uma hora. Na manhã seguinte acordávamos em silêncio, vestíamos a batina e, em fila, íamos à capela assistir à missa das seis e trinta. No Refeitório era lido um trecho da história do Santo do Dia, encerrando o Silêncio através de um toque na mesa com um pequeno martelo de madeira pelo Superior. Nessas horas, falávamos até pelos cotovelos, pois, as palavras já estavam eclodindo em nossas gargantas. Quando excedíamos no tom da conversa recebíamos repreensões para falarmos mais baixo.
Após o café, o recreio era de uma hora, aproximadamente. Aqueles que estudavam pela manhã, nos colégios da Cidade, iam para suas escolas. Os que só estudavam à tarde ficavam, após o recreio, na sala de estudos, fazendo suas tarefas até as dez e trinta, quando, em seguida, eram convocados para trabalhar até as onze e trinta na limpeza geral do Mosteiro. Alguns optavam por trabalhar na horta capinando, plantando hortaliças, colhendo frutos ou engarrafando vinho de missa na adega. Eu preferia trabalhar na horta pelas minhas origens e, na verdade, dava um show sobre os demais companheiros. Em seguida, banho, reza na capela, almoço, recreio e, quem estudasse à tarde ia para suas escolas. Ao retornar, banho, reza na capela, janta, recreio, sala de estudos, reza e cama. Essa era a rotina da vida naquele Mosteiro ou em qualquer Mosteiro da Ordem de São Bento. Eu rezava muito, sobretudo e tão somente, para que as próximas férias chegassem rápidas, só pensando em voltar para casa, contentando-me em apenas ver Raquel. Não tinha mais coragem de aproximar-me dela. Ela, cada vez mais alta, aos quinze anos já tinha um metro e setenta centímetros de altura, enquanto eu não passava de um metro e meio aos dezesseis.
Era o efeito anão em mim, complexo que virou doença.
.Estudava no Colégio Diocesano à tarde. Muito rígido por sinal, porém, uma referência em estudos naquela Cidade e em todo o Estado. Tinha um Diretor vitalício, chamado: Padre Adelmar da Mota Valença. Os alunos chamavam-no de “Cavaleiro Negro”. Era muito seco e confesso, nunca o vi sorrir. Sua irmã, porém, era um doce de pessoa. Tinha a função de Coordenadora e todos recorriam a ela como que fosse Nossa Senhora. Na verdade ela fazia o mesmo papel de intercessora junto ao Diretor por nós, na hora que cometíamos alguns deslizes. Eu era muito comportado e não precisava recorrer nem a ela, nem ao padre, pois, nunca cheguei atrasado. Ao contrário, alguns alunos ao chegarem atrasados não encontrassem seus cartões de frequência, estes seriam recolhidos para a diretoria. O aluno tinha que ir buscá-lo no birô do Padre. Que fria! Que bronca tomavam!
A essas alturas onde ficava o meu complexo?!
Os desfiles eram obrigatórios naquele colégio. Eu, aos quinze anos, fala grossa, barba engrossando no rosto, desfilava entre os meninos de nove e dez anos, bem lá atrás, na fila, porque era pequeno. Na hora do desfile os assistentes identificavam-me pela cara de velho entre às crianças e diziam: _ Olha ali!... Cara de homem feito entre as crianças! _ Velho!...Velho! Barbudinho!... Barbudinho! Não me deixavam em paz.
Só faltava morrer de vergonha, sem ao menos poder dar uma resposta. Odiava tudo aquilo. Jurava não mais desfilar no ano seguinte, embora levasse o castigo.
Ano seguinte, com quase dezesseis anos, menos de um metro e meio de altura, tomei uma decisão inédita. Iria à Coordenadora, D. Almira, a Nossa Senhora dos incautos, em busca de proteção. Muito tímido e complexado, arranjei coragem, não sei onde e, diante dela, disse-lhe: _A Senhora dispensa-me de desfilar este ano? Ela me perguntou qual seria a justificativa. Eu disse-lhe que não podia desfilar entre os meninos novos porque já tinha dezesseis anos e não era mais um garoto. Ela olhou para mim, sorriu e disse: _ Vou dar um jeito! _ Volte à classe, e quando tiver perto do desfile, avise-me. Fui contente para a sala de aula.
O mês de Setembro estava perto, o Colégio fazia um ensaio na quadra. Ao avistar D. Almira, fui ao encontro dela, lembre-lhe do que tinha falado. Ela falava baixinho com o Instrutor, enquanto eu apreensivo e envergonhado, esperava uma oportunidade para lembrar-lhe do combinado. Sem que eu esperasse mais ela me toma pelo braço colocando-me entre um bloco de alunos e outro dividindo o pelotão. Pensei comigo: _Agora é que as pessoas vão me ver mesmo! Após o ensaio voltei à Coordenadora, fiz a queixa, enquanto ela me explica: _Fique tranquilo, vou dar um jeito. Eu confiei e não mais a procurei.
No dia do desfile, estava eu dividindo o pelotão com uma enorme Bandeira do Brasil. Quando os assistentes olhavam para mim de um lado da rua eu tapava a cara com a Bandeira. Fazia a mesma coisa quando, do outro lado olhavam para mim. Finalmente, aquele e nos anos seguintes, os desfiles foram maravilhosos!
No Mosteiro, éramos proibidos usar sapatos tipo “Cavalo de Aço”, calças Jeans “Boca Sino” e tão pouco, cabelos longos, tudo isso na moda com a explosão da Jovem Guarda e os movimentos hippies da época. Só podíamos usar sapatos Vulcabrás, ou de outras marcas, sendo de saltos baixos. Sentia vontade de calçar aqueles horrorosos sapatos, que, para mim, nas atuais circunstâncias, seriam mais funcionais que bom gosto. Esses sapatos poderiam acrescer minha estatura a uns dez centímetros encobertos com a famosa calça Boca Sino.
Aos Domingos tínhamos folga. Após o almoço saíamos em grupos a passear pela Cidade, ou para assistirmos alguns filmes com censura previamente recomendada pelo Superior da Ordem: Ben-Hur, O Manto Sagrado, Moisés, A Arca de Noé, A Noviça Rebelde (com reserva), Bem! A gente se esbaldava.
Ao passar pelas vitrines das lojas de sapatos eu via expostos aqueles monumentais “Cavalos de Aço”. Acabava distanciando-me do grupo, pensando na altura que poderia ficar se usasse um salto daqueles. Pensava em Raquel e dizia: Quando eu deixar o Mosteiro, irei direto a uma sapataria comprar um par de sapatos desses!
Nunca havia comemorado aniversário no Mosteiro. Sempre escapava sem que alguém lembrasse minha data. Pedia a Deus para ser esquecido sempre. Detestava comemorações de aniversários, principalmente, porque era muito pequeno para minha idade. Sempre dava certo, até que um belo dia foi descoberto. Por acaso escutei alguém falar de aniversário naquele dia e fiquei em dúvida se era sobre o meu que comentavam.
Tomei uma decisão inédita.
Fiz a maior loucura que podia fazer um aluno comportado com eu.
O Pomar era grande, denso, bem arborizado e eu, indígena de descendência, subia em árvore como um macaco. Foi o que fiz. Pela manhã subi numa árvore de folhagem densa no lugar mais fechado do Pomar. Tive o cuidado de passar pela dispensa e preparar quatro pães com manteiga e uma garrafinha d’água. Assim, daria para passar o dia sem fome e sede.
Era meu aniversário naquele dia de Sábado e não faltaria aula no Colégio.
Acho, por ser muito pequeno, só deram pela minha falta na hora do almoço. As buscas foram intensas durante toda a tarde. Dentro do Mosteiro, entre celas, grutas, capela, porões, adega, torre, lavanderia e fora, no pomar. _Será que ele foi à Cidade? Diziam. Formaram grupos de buscas, rondaram alguns quarteirões e nada de me encontrarem. O Superior apreensivo, já redigia uma nota para colocar na Rádio Local. Ninguém sabia o motivo do meu desaparecimento, só eu. Vergonha de comemorar meu aniversário, ficando mais velho naquele dia e daquele tamanho.
As buscas continuavam e o Superior cada vez mais aflito com o meu desaparecimento. Enviou mensagem ao Sistema de Rádio local para anúncios de desaparecidos, mas não chegou a veicular. Já estava escuro e todos voltaram para o hábito normal.
Eu em cima da árvore com medo do cântico das corujas e de outros pássaros noturnos, resolvi descer.
Cansei! Caminhei em direção ao Refeitório, apresentei-me desconfiado e muito amedrontado às sete da noite. Estava na hora da janta e entrei no refeitório com a cara mais lisa e desconfiada do mundo como se nada houvesse acontecido. O Superior olhou-me com alívio e ao mesmo tempo bronqueado, enquanto os colegas em algazarra bateram uma salva de palmas, surpreendendo até os padres. Pensei que estavam comemorando meu aniversário que mais uma vez havia passado em branco.
Sobre o desaparecimento Justifiquei-me somente ao Superior, pedindo-lhe não falar para ninguém porque fiz aquilo. Em troca ele comemoraria meu aniversário no dia seguinte (Domingo). Ele concordou. Bem melhor que um castigo, embora, para mim não seria um enorme castigo comemorar meu aniversário?!
Não pude mais me esconder no dia do meu aniversário nos anos seguintes.
João Bezerra da SILVA NETO - COLUNISTA DO DIVULGA/ESCRITOR
e- mail: João.digicon@gmail.com