Meus Complexos e Traumas em Cinco Atos (Bullying) – Por SILVA NETO
Primeiro ATO:
Nasci no Engenho Barro Branco, ao pé da Serra do Espelho, em um lugar chamado Vargem das Cobras, pertencente à Usina Frei Caneca, Município de Maraial, PE.
Esse lindo e famoso endereço nem no mapa existe. Foi de lá que saiu uma penca de oito bebês pegos pela parteira do lugar, madrinha Quitéria, que Deus a tenha, sendo eu o sexto filho de D. Lili e de Seu Amaro Caboaba.
Quando tinha sete anos meu pai arrendou o sítio onde morávamos e fomos residir em Catende, cidade de uns dez mil habitantes, mas, para nós crianças, uma verdadeira metrópole. A casa tinha um piso de cimento liso, o assoalho mais cobiçado pela pobreza da época, pois, piso de mosaico era coisa de rico. Lá, no sitio, era de chão batido, paredes de taipa e cobertura de sapé, (capim nativo do lugar). Não tínhamos banheiro como aquele dentro de casa, com bacia sanitária e papel higiênico. Água encanada e chuveiro nem pensar! Toda água era trazida da cacimba, transportada na cabeça ou ao lombo de jumentos; tomávamos banhos de cuia no quintal de casa dados pela nossa mãe. Luz elétrica era a novidade mais evidente na nova casa, pois, no sítio só havia candeeiros a querosene. O fogão era de lenha, e agora estávamos em frente a um objeto quadrado com um botijão ao lado e, quando acendíamos, o fogo era azul, saindo daquelas quatro bocas. As paredes rebocadas e caiadas deixavam o ambiente com uma luminosidade intensa saída daquelas lâmpadas quando ligadas à noite; longe daquelas tochas avermelhadas, mal cheirosas do fumo do querosene dos candeeiros da antiga moradia. Morávamos, agora, num verdadeiro palacete, dizíamos.
Éramos matutos nascidos nas brenhas, quase indígenas, ou melhor, indígenas mesmos, pois, nossos ancestrais foram índios de verdade. Minha bisavó foi pega a dente de cachorros quando apareceu em uma roça garotinha ainda, com aproximadamente doze anos de idade. Adotada pela família portuguesa, casou-se com meu bisavô. Essa indiazinha era da tribo dos Caboabas, por isso meu avô se chamava João Caboaba, meu pai Amaro Caboaba, cujo sobrenome ficou para trás. Minha bisavó morreu com incríveis 136 anos e lúcida ainda. Acreditem se quiser, mas, a família é de vida longa. Ela tinha um metro e quarenta centímetros de altura e por incrível que pareça toda a família herdou a pequenez de estatura dela. As mulheres descendentes diretas não passavam de um metro e quarenta e cinco de altura, enquanto os homens, mal chegavam a um metro e cinquenta. Embora pequenos, eram todos troncudos, como o próprio sobrenome indígena Caboaba, que significa semelhante a um Baobá, árvore de troco grosso.
Agora, na cidade grande, os problemas começariam a aparecer.
A verdade é que além de mudarmos de ambiente, mudamos de costumes. Precisávamos ambientar no lugar, conhecer pessoas, frequentar a escola e isso era o mais difícil.
Logo conhecemos os garotos vizinhos, todos metidos, com linguagem, modos e brincadeiras diferentes das que conhecíamos. Eu só sabia subir em árvores, tirar frutos, andar nos matos, matar cobras, caçar passarinhos de bodoques. Nossas brincadeiras, lá no sítio, eram: correr um atrás dos outros; brincar de mal assombro em noites de Lua Cheia; atear fogos em pequenos entulhos; assar castanhas de caju; tomar banho de bica e de açude e escutar histórias que meu pai e meu avô contavam.
Na cidade teria que reaprender novos costumes, aprender as brincadeiras novas, enfim, ambientar-nos com toda aquela meninada e por isso as brigas passaram a ser constantes. Não entendia a linguagem dos garotos quando falavam comigo e nem eles me entendiam. As gírias eram diferentes, o sotaque carregado e por isso não suportava quando eles me chamavam: _matuto!... Caipira! Era briga na certa. Todos os dias as mães vizinhas viam reclamar à minha mãe por ter batido em um dos seus garotos. Apesar de pequeno, bem menor que os da mesma faixa de idade, eu era forte, saudável e ligeiro, corria muito, nenhum conseguia me pegar para tirar à forra.
Entrei na escola aos sete anos. Minha mãe teve o cuidado de nos alfabetizar em casa ensinando a Cartilha do ABC, escrever o nome, e nosso pai nos ensinou a contar e a fazer as primeiras contas. Na escola, apesar de muito tímido, era aluno nota dez. Demorei a ambientar-me logo que percebi que era muito pequeno, tanto que já surgiam brincadeiras e apelidos desagradáveis dos coleguinhas ao meu respeito.
Em cima dessa estatura diminuta nasceram meus complexos e traumas que me arrastaram até, aproximadamente, trinta anos de idade.
Fazia meus próprios brinquedos: carrinhos de madeira ou lata, pinhões, patinetes de rolimãs e, com isso, ganhei a simpatia de muitos garotos.
Uma vizinha veio morar na casa ao lado. Era uma senhora idosa, branca, falando estranho, muito arrumada e feições de mulher rica. Diziam que era italiana.
Com ela, outra senhora mais nova e um garoto um pouco mais velho que eu. Logo nos tornamos amigos. Suas primas moravam no engenho Monte Alegre, próximo à Cidade, passando a visitar sua avó e tia constantemente. Na primeira visita não as conhecia, estava fazendo um carrinho quando escutei vozes diferentes de crianças. Eram vozes lindas vindo daquela casa, risadinhas e troca de carinhos com sua avó e tia. Fiquei curioso e ansioso para vê-las. Na certa eram bonitas. Subi na janela de casa avistando o quintal vizinho, quando uma delas apareceu para pegar um brinquedo. Escorreguei janela abaixo a uma altura de dois metros. Gritei, e elas ouviram a queda e o grito, subiram no muro olhando-me com cara de penalizadas. Envergonhado fui levado para dentro de casa chorando com o tornozelo inchado. Elas correram e contaram a sua avó. Logo a casa estava cheia daqueles vizinhos estranhos e dois rostinhos lindos se compadecendo de mim. Já estava medicado e sem chorar. Esbocei um leve sorriso para uma delas que me chamou mais atenção. Era uma menina linda, cabelos cor de mel, olhos claros grandes, sorriso encantador, um anjo em pessoa. A outra era mais alta, magricela, rosto lindo também. Ela me perguntou se doeu. Sua voz é que doeu em mim, ficou gravada em minha mente durante muito tempo. Era o cupido, a afinidade em ação, tudo aquilo que não sabemos explicar estava acontecendo. Eu uma criança de sete anos, ela de seis e tanta paixão à primeira vista, só coisa de Deus.
Na semana seguinte elas voltaram. Raquel, seu nome, foi logo chamando a irmã para uma visitazinha. Eu já estava bom brincando no quintal. Nós brincamos juntos com tanta intimidade que parecíamos íntimos de longa data. Ficamos namorados mesmo sem sabermos o que era isso, claro, guardando as devidas proporções. Quem olhasse para nós dois não tinha dúvidas de que éramos afins, coisas que só a Natureza explica. Todos diziam que éramos namorados, íamos casar quando crescêssemos.
No Natal houve uma procissão na Igreja Matriz, ela foi carregada em um andor vestida de Anjo. O Anjo mais lindo que já vi. Não sei se (Anja), pois Anjo não tem sexo.
Nas festas de fim de ano saímos juntos. Ela estava linda, eu vestia roupa nova. Meu pai vendia miudezas e, entre as bugigangas, perfumes, colônias, sabonetes etc., Eu fui até sua mala de negócios e roubei uma colônia bastante perfumada, embrulhei em um papel de presente e dei à Raquel. Ela achou aquilo muito estranho, não quis receber. Eu disse que tinha tirado da mala de meu pai. Ela já havia aberto o pacote. Eu aproveitei, abri o frasco da colônia colocando em seu vestido um pouquinho. Também coloquei na minha roupa, guardando o frasco na mala de onde havia tirado. Esse fato ficou marcado em minha vida. É um perfume que não sei o nome, mas, posso identificá-lo se alguém estiver usando hoje. Corremos no carrossel, nos cavalinhos, comemos pipocas, algodão doce, tomamos geladinha, foi o melhor fim de ano de toda minha vida.
Os anos foram passando. Enquanto Raquel crescia, eu ficava emperrado. Isso foi me incomodando, principalmente quando minhas tias falavam brincando: _Cresce Joãozinho, senão Raquel arranja outro. Eu já estava com dez anos, ela com nove, bem mais alta que eu. Já não caminhávamos de mãos dadas nas festas de fim de ano mesmo quando estávamos sós, pois, tinha vergonha de segurar-lhe as mãos entre as pessoas.
Meu complexo aumentava cada vez mais com os apelidos dados na escola, na rua, até mesmo entre os familiares. O certo é que era pequeno demais. Aos dez anos não tinha sequer um metro de altura.
Aos onze anos terminava o curso primário sendo o melhor aluno da Escola. A diretora, D. Deolinda, minha fada madrinha, foi logo a procura de meus pais para pedir-lhes consentimento para levar-me para um bom colégio. Era uma senhora muito católica, tinha a intenção de me fazer um padre. Escolheu o Mosteiro de São Bento na cidade de Garanhuns, PE, onde fui internado naquela Instituição Religiosa. Eu já havia feito a primeira comunhão, crismado, e era coroinha da Igreja Matriz de Catende, tão pequeno que mal podia balançar o sino na hora da missa.
Para mim foi uma dor ter que ficar longe de Raquel. Mas, ela maior que eu, só havia uma esperança, crescer. Quem sabe, mudando de clima e de alimentação isso não ocorreria?!
O dia da viagem foi um dos que mais doeram em mim. Não havia ônibus passando em Catende para Garanhuns e sim, o trem, Maria Fumaça.
Minha mão e meus irmãos choraram muito na minha despedida. A Diretora, D. Deolinda e minha primeira professora, D. Lurdes, reuniram na estação vários colegas de classe para a minha despedida. Raquel não estudava na mesma escola que eu, mesmo assim procurava-a entre meus colegas, aflitamente. Não havia nos despedidos antes. Estava me sentindo culpado. O trem apitou na curva ao longe. Os colegas começaram cantar o Hino Nacional. O trem aproximava-se vomitando fumaça branca de lenha verde, freando as manivelas, crescendo o barulho e o alvoroço dos passageiros. Meu coração apertava, as lágrimas caiam ao ver sorrisos e lágrimas naqueles rostinhos. Meu pai, junto a mim, esperava que o trem parasse para embarcarmos com aquela mala pesada. Ele e a Diretora da Escola iam comigo. De repente, apareceu Raquel, suada, radiante, cabelos esvoaçantes, com aquele sorriso misto de choro esbarrando entre os alunos, colocando-se à minha frente, estática, enquanto meu pai disse: _Entre meu filho, o trem vai partir. Fitávamos desesperados um ao outro, sem palavras. Ainda esboçamos uma tentativa de contato enquanto o Trem dera partida. Um saudoso e entoado apito longo e repetido. Rolos de fumaça branca saindo das manivelas tornava a paisagem densa cortada por vultos imperceptíveis à medida que se distanciava da Estação. Barulho ensurdecedor, acenos de mãos, sorrisos e lágrimas. Corações batendo tão forte quanto aqueles impulsos da locomotiva. Cabeça fora da janela, braços estendidos em um adeus de perder de curva e de vista, por seis meses, até as férias de junho.
Os primeiros dias no Mosteiro foram um suplício até chegarem as tão esperadas férias. Chorava todos os dias. Sentia muita saudade e não podia sequer mandar uma carta, pois, as cartas aos familiares eram lidas pelo Padre Superior (Prior), não podendo sequer colocar no correio escondido, nem desabafar com algum colega de seminário, tinha vergonha. Às vezes minha cabeça dava um nó. Afinal, ia estudar para Padre e estava apaixonado por uma mulher. Onde ficaria o celibato nesta história?
Era muito novo para entender certas coisas... (Continua no próximo texto)
João Bezerra da SILVA NETO, e-mail: João.digicon@gmail.com
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