Desde 10 de março de 2012 o mundo das histórias-em-quadrinhos ficou mais triste. Faleceu Moebius, mestre da narrativa gráfica. Seria desnecessário enumerar as grandes contribuições desse artista para os quadrinhos, mas destaco Arzach. Uma coletânea de histórias surreais, publicada primeiramente entre 1975 e 1976 na revista Métal Hurlant, que foi considerada revolucionária e consistia numa série de histórias mudas. Arzach cuja grafia do nome varia bastante de uma história para outra, Arzach, Harzak, Harzack, Harzach e Arzak, foi um marco nas histórias-em-quadrinhos mundiais.
Com uma narrativa surreal, as histórias acabavam sempre com uma ironia fina em torno das aventuras de Arzach, último dos pteroguerreiros. Numa clara influência de Druillet, nas palavras do próprio Moebius, essas aventuras tinham como pano de fundo uma terra cheia de gigantes, monstros, princesas “nem tão princesas assim”, desertos e muita magia misturada com tecnociência. Moebius soube dosar, como ninguém, o universo fantástico de um guerreiro montado num pterodátilo em busca de aventuras com o humor e a ironia fina que só ele sabia incrementar nas histórias.
Numa das histórias, o pteroguerreiro sobrevoa um castelo de pedra com seu amigo alado. Avista o corpo (só o corpo não o rosto) nu de uma bela mulher pela janela do castelo. Um gigante vermelho, provável guardião da donzela esbraveja contra Arzach. Ele dá a volta com o pterodátilo e laça o gigante com uma grande corda, carregando por entre os ares, onde se vê proscritos verdes encima de uma torre. Finalmente, num enorme esqueleto de monstro morto, Arzach amarra o gigante e volta ao castelo para conquistar sua dama. Mal sabe ele que a donzela tem um rosto monstruoso que só se revela quando o pteroguerreiro a vê na claridade. Desiludido, ele vai embora e segue viagem com o pterodátilo. O último quadrinho mostra o gigante preso fazendo um sinal característico de que o guerreiro não bate bem da bola.
Ainda num outro conto visual de Arzak, vemos um novo personagem e uma nova perspectiva sobre a história do pteroguerreiro. Num carro com modelo de 1920, no meio do deserto (sempre os grandes espaços vazios tão raros hoje em dia nas nossas cidades), a toda velocidade, um homem aproxima-se de um grupo de restos de pirâmides, um museu arqueológico. O personagem misterioso, para o carro e sobe as escadarias do monumento carregando uma mala. Ele adentra a pequena entrada na pedra e avista o que parece ser uma pequena central de força com grandes tubos coloridos saindo dela e indo para o teto. Em volta, muitos proscritos nus, com aparência de loucos, comportam-se como num hospício. O homem com a mala passa por eles sem parecer se importar; até que um dos proscritos dá uma pesada (um golpe de karatê?) nas costas do homem com a mala. Ele cai no chão, e a força do golpe o coloca bem perto da entrada da central de força. O homem perde os seus óculos e sangra. Os proscritos se reúnem em volta do homem com a mala. Ele apenas olha, sabe que eles nada farão. Abre a porta e uma pequena sala com aparatos tecnológicos se descortina no meio daquele sítio arqueológico no deserto. Ele abre a mala. Enquanto isso, Arzach aparece pela primeira vez, ao que parece, impaciente, esperando uma solução para a doença do pterodátilo que jaz no chão de olhos fechados. Corta de novo para a cena do homem com a mala que esta consertando com uma chave de fenda, toda tecnológica, um dispositivo vermelho, como toda a sala. Corta de novo para Arzach, que dá as boas vindas para o pterodátilo reanimado. O homem com a mala, vê no seu monitor da sala vermelha, o pteroguerreiro montado de novo no animal voador, partindo. E depois ele mesmo parte no seu carro de modelo 1920, deixando um gostinho de elucubrações filosóficas entre o macro e o microcosmo.
Os grafismos e as cores nas histórias são magistrais e demonstram todo domínio técnico de Moebius na arte da narrativa gráfica. Os roteiros, como descritos aqui, que são uma mistura de fantasia surreal e aventura do mundo do além, demonstram a maturidade de um artista fantástico. Em suma, as histórias fazem por merecer serem consideradas geniais e revolucionárias. Por isso e por tudo o mais, Moebius é o grande autor das histórias em quadrinhos mundiais, merecendo ser revisitado, sem sombra de dúvida, hoje e sempre.