NÃO DEIXE CAMINHO POR ATALHO - Por SILVA NETO
Histórias contadas pelo meu avô
Certa vez, João Caboaba voltava da feira para casa. Era Sábado, tendo passado todo o dia transportando a lenha cortada para os fregueses das padarias e boa parte da população daquele lugarejo. À tarde, fazia a cobrança das entregas da semana, aproveitando a noitinha para fazer compras no barracão e na feira-livre noturna chamada de “Bacurau”. Após as compras feitas, colocada em dois sacos amarrados um ao outro e apoiados de travessa no lombo do cavalo, sentava na calçada para prosear com alguns companheiros e conhecidos da localidade. Sua conversa equilibrada de homem sensato, honesto, corajoso, alegre e inteligente era conhecida de todos. Tomando a gostosa “temperada” de “Seu Toinho”, e baforando o cachimbo de fumo de rolo deixava-se embalar no galope das cantigas brejeiras. À medida que a bebida começava a fazer efeito, tornava-se cômico, deixando aflorar o gosto poético pelas rimas de improviso, cantarolando emboladas ao sabor do repente, fazendo embolar de rir a todos os companheiros presentes. Lá pelas tantas, ainda sóbrio, montava seu cavalo e partia despedindo-se de todos. Era sempre a mesma rotina aos finais de semana. Naquela noite de lua-cheia não seria diferente.
O cavalo, um belo campolina castanho, pescoço erguido, arisco, porém domado, boa passada, caminhava sem tropeços naqueles caminhos estreitos e alvejados pela claridade lunar rumo ao sítio, propriedade dos Caboabas, distante do vilarejo uns seis quilômetros. A brisa roçava em seu rosto, e do canavial vinha sons de grilos, sapos, colibris, corujas, bacuraus, orquestrando aquela noite de lua cheia e céu estrelado. Guardava no bolso o cachimbo depois de haver apagado. Pensava na luta diária pelo pão de cada dia, na situação de seus animais agora sendo encaminhados para o curral pelos ajudantes depois de um dia intenso de trabalho. Sons vinham de todos os lados. As corujas “rasga-mortalhas” voavam em bandos num ritual frenético de acasalamento aproveitando a claridade da noite para comerem mosquitos. Ao longe, uivos de lobos guarás, cânticos de seriemas e toda sorte de pássaros noturnos, além do cintilar dos vaga-lumes, para todos os lados que se olhasse. O cavalo, às vezes, arrotava, sacudindo a cabeça para os lados, fazendo a digestão do milho que havia comido antes da partida.
Já havia caminhado a metade do percurso, logo chegaria à grande enseada de canavial viçoso e florido, tendo que rodear pela estrada principal, formada em um ângulo de quase noventa graus. Mas a lua estava clara, certamente o cavalo não iria estranhar se tomasse o atalho por dentro da enseada. Foi assim que pensou Caboaba! Havia um atalho que ligava um lado ao outro do vale à estrada principal, descrita anteriormente, que encurtava o percurso em quase dois quilômetros. Entretanto, no meio do vale existia uma casa em ruínas, rodeada de árvores frutíferas centenárias, como: jaqueiras, cajueiros, mangueiras, formando um pomar denso e lúgubre. Seus moradores deixaram aquela propriedade uns para longe dali, outros para o cemitério. Corriam boatos que, tempos atrás, um morador havia se enforcado naquela casa. Ninguém ousava passar por ali, mesmo durante o dia, a não ser homens desassombrados como Caboaba. O caminho era estreito e o mato crescido devido ao pouco uso. Mesmo assim, acendendo aqui, acolá, o grande isqueiro feito de vasilhame de lança perfume, Caboaba lançava o cavalo seguindo em frente em passadas curtas dentro daquele vale. O céu, mesmo claro, vez por outra passava uma nuvem escura cobrindo a lua, deixando o caminho ainda mais escuro. Foi exatamente quando a nuvem escurecia a luz lunar, ao adentrar debaixo da primeira árvore do pomar, um enorme cajueiro centenário, ouviu-se um grito vindo daquela ruína. UAUAUIU!!!. Não era simplesmente um grito, mas algo sem precedentes, nunca antes ouvido por Caboaba, homem nascido e criado nas entranhas daquelas matas. O grito, uivo, ou sei lá o que, parecia um apelo de alguém que estivesse se enforcando; algo ensurdecedor, rouco, de apelo final por socorro ou de aviso de combate. Ao escutar, o cavalo levantou as duas patas dianteiras, soltou um relincho de medo, tomando as rédeas do cavaleiro e sacudindo-o por cima da cabeça, correndo em disparada de volta pelo mesmo atalho percorrido, tomando em seguida à estrada principal em direção ao Sítio. O cavalo pegou Caboaba de surpresa, deixando escapar as rédeas de suas mãos e quando deu por si estava de pé, no meio do caminho escuro, com o isqueiro na mão esquerda, o punhal á direita e o chapéu dependurado para trás, preso por um cordão no pescoço. Ouviu-se o segundo grito, vindo do interior da velha casa, agora, mais estarrecedor ainda...
Caboaba não era homem de recuar diante de qualquer situação, ainda mais sem matar a curiosidade pelo bizarro e cavernoso grito. O que iria contar aos seus amigos se voltasse do caminho como o cavalo voltou. E, aquele grito? Que animal seria? Alma penada de outro mundo? Como seria essa alma? Todas essas interrogações passavam pela sua cabeça, mesmo sem sequer ter pensado em recuar. A luz da lua penetrava pelas frestas das folhagens misturando-se com as luzes dos vaga-lumes, tornando aquele cenário digno de um filme de terror. Aproximando-se do velho casarão em ruínas, a lua refletia em parte de seu telhado, penetrando a luz no interior de onde se via um vulto esbranquiçado, como que fossem alas abrindo e fechando. Mais um grito sussurrante ecoou na noite, emudecendo os demais cânticos, desde pássaros, animais e insetos. À medida que Caboaba avançava os gritos se tornavam mais frequentes. Chegando frente à ruína, as portas e janelas estavam semiabertas, deixando ver a pouca claridade em seu interior, vinda da abertura do telhado gasto pelo tempo. A porta principal era de dois rolos, comum naquela região. Para o leitor que não sabe eram portas constituídas de duas partes: a de baixo, e a de cima. Ambas, eram fechadas com tramelas, espécie de ferrolho feito de madeira. Finalmente chegou à porta principal. Não quis acender o isqueiro, pois, queria surpreender o estranho inquilino, sem se deixar notar, o que seria impossível, já que os gritos, cada vez mais constantes, davam sinais de que o estranho ser o pressentia desde os primeiros passos do cavalo próximos aquela velha tapera. Com a mão esquerda na parte de cima da porta, e a direita segurando o punhal, tentava empurrá-la para dentro, quando, após as dobradiças rangerem freneticamente gasta pela ferrugem, as duas partes caíram de uma só vez. Neste instante, a Usina de Açúcar apitou, ao longe, o toque da meia noite. Caboaba estava diante de um corredor mal iluminado, desprotegido de qualquer escudo protetor. Mesmo assim, ultrapassava a porta em direção ao corredor central quando, nesse momento, ouviu um sacolejar de asas e um grito ensurdecedor acompanhado de pios, como que fossem filhotes abandonados em ninho. Caboaba segurou fortemente o punhal em sua mão direita, cujo ser possesso vinha tomando todo o corredor, com suas asas abertas, em investida furiosa. O valente homem, deixando o isqueiro cair, ergue o braço em meio a penumbra, sentindo as unhas d’aquele ser possesso, encravadas em seu braço esquerdo. Em rápido golpe empurra o punhal, no peito do estranho ser, que responde com mais um grito ensurdecedor. Enquanto Caboaba gritava: — Toma lá, Satanás! A brava fera respondia a todo pulmão. As nuvens encobriam a noite lunar, enquanto aquela batalha estava apenas começando. O Bicho gritava e Caboaba também, embrulhados um ao outro seguindo em direção ao Sítio. O sangue escorria tanto do braço do valente homem, como do peito da intrigante fera. Aqui, acolá, o grito da fera e por tantas vezes o grito de Caboaba, puxando e empurrando o punhal. — Toma mais um Satanás! Até que a fera se rendesse.
Em caminhada a largos passos, quase correndo, adentra a propriedade segurando aquela marmota. O braço já estava dormente, tanto pelo peso do estranho animal quanto pela perda de sangue. A essa altura a fera já dava sinais de rendição. Seu grito não era o mesmo de antes, embora tornasse um som rouco, bem mais assustador. Finalmente, chegaram à porta da casa. Sua esposa já havia acordado quando, lá pelas onze, o cavalo chegara sem o cavaleiro, sem as compras, molhado de suor e com os sacos das compras vazios e dependurados. Vovó Nina esperava-o ansiosa, rezando aos pés de Nossa Senhora das Dores para que seu marido estivesse vivo. Pois, sabia que a desgraça tinha acontecido. Ao barulho na porta, levanta-se apressada e ao abri-la, Caboaba arrasta o punhal do peito da vítima e enterra-o novamente, com o grito de guerra “Toma mais um Satanás!”. A fera não se dando por vencida esbraveja um grito rouco de morte, afrouxando suas garras do braço de Caboaba, tombando sem vida na frente da casa. D. Nina, arrepia-se dos pés à cabeça, joga-se aos braços do marido toda trêmula, aos soluços. O que é isso Caboaba! Sei lá, respondeu ele. Deve ser coisa de outro mundo. Nunca vi algo tão feroz! Vovó Nina, leva-o para dentro de casa, pega uma bacia com água, uma toalha e começa a estancar o sangue do seu braço.
Em seguida, de posse de um candeeiro, foram examinar a fera ainda semimorta, com o peito vermelho de sangue. E, para grande surpresa, constataram ser uma Coruja Papa Bode, a maior das aves daquele gênero, que de uma asa a outra media mais de dois metros de comprimento. Quase dia, bem cedinho, caminharam até a velha casa em ruínas, encontrando lá os filhotes recém-nascidos, que eram antes protegidos por uma mãe brava em defesa de suas crias.
Obs. Os nomes de alguns personagens dessa história são fictícios, menos o de minha avó Nina e do herói, João Caboaba, meu avô paterno.
e-mail: João.digicon@gmail.com