O abuso sexual em menores: um dos maiores problemas de saúde pública

O abuso sexual em menores: um dos maiores problemas de saúde pública

O abuso sexual em menores: um dos maiores problemas de saúde pública.

 

Na Constituição Federal Brasileira de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8069/90 e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989. Em abril de 1993, o Congresso Nacional respondeu com a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, destinada a apurar responsabilidades pela exploração e prostituição infanto-juvenil – a CPI da Prostituição Infantil. Participaram dessa discussão e da elaboração do Plano Nacional, representantes do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público, de órgãos dos executivos federal, estaduais e municipais, de ONGs brasileiras e internacionais, assim como representantes juvenis e integrantes dos conselhos tutelares e do meio acadêmico. O Plano Nacional foi aprovado na Assembleia Ordinária do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente – CONANDA – em 12 de julho de 2000.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o abuso sexual infantil é considerado um dos maiores problemas de saúde pública. Estudos realizados em diferentes partes do mundo sugerem que 7-36% das meninas e 3-29% dos meninos sofreram abuso sexual (WHO, 2003). As estatísticas, portanto, não são dados absolutos. Trabalha-se com um fenômeno que é encoberto por segredo, um “muro de silêncio”, do qual fazem parte os familiares, vizinhos e, algumas vezes, os próprios profissionais que atendem as crianças vítimas de violência (BRAUN, 2002).

Assim, buscou-se refletir, com base na história, sobre o abuso sexual com crianças e a sua sexualidade, presente desde sempre. Observou-se como a prática de maus tratos com a criança e adolescente, incorporada ao cotidiano desde os tempos mais remotos, assumiu várias máscaras, sendo vista em certos momentos até mesmo como uma prática habitual. Com o advento da psicanálise, tornar-se imprescindível a construção de identidades que não sejam a de vítima de abuso sexual, fazendo o sujeito sair da posição de objeto e colocando-o como responsável pela causa de seu desejo.

A violência é um fenômeno social global, considerando-se como um problema de saúde pública que perpassa as diferentes classes sociais, culturas, relações de gênero, raça e etnia. As relações interpessoais são situações em que pode ocorrer violência, caracterizando-se a violência interpessoal. Concernente à violência de gênero, sabe-se que mesmo em suas modalidades intrafamiliares e domésticas, é proveniente de uma organização social de gênero que privilegia o masculino (SAFFIOTI, 1999). Num estudo recente da OMS (2005), o qual envolveu múltiplos países, foram entrevistadas mais de 24.000 mulheres em 10 países: Bangladesh, Brasil, Etiópia, Japão, Peru, Namíbia, Samoa, Iugoslávia, Tailândia, e República Unida da Tanzânia. Foi-lhes perguntado se elas haviam sido tocadas sexualmente por alguém ou se haviam sido forçadas a fazer algo de natureza sexual contra a sua vontade antes dos 15 anos de idade. Na verdade, pelo menos metade de todas as mulheres em Bangladesh, na província da Etiópia, Peru, Samoa, e a República Unida da Tanzânia, disse que tinham sido atacadas fisicamente ou sexualmente desde essa idade.

Em geral, a grande maioria dessa violência foi praticada por um parceiro íntimo. Apenas em Samoa as mulheres possuíam menor risco de violência advinda por seu marido ou parceiro íntimo, comparada a estranhos ou outras pessoas conhecidas.  Assim sendo, a violência física e sexual por parceiros, possui uma variação, indo de 15% na cidade japonesa a 71% na província da Etiópia. De acordo com a OMS, os dados são consistentes com estudos semelhantes em países industrializados, e desafia a percepção comum de que o lar é um lugar de segurança ou de refúgio para mulheres.

Assim, constata-se então que os níveis de violência notificados nos diversos países diferem consideravelmente. Além disso, em países onde as grandes cidades e as configurações provinciais foram estudadas, os níveis globais de violência por parceiro íntimo foram sempre superiores nas configurações da província, que tinham populações mais rurais, que nas áreas urbanas, segundo a OMS (2005).

Em adição, identificou-se que a violência física por parceiro é quase sempre acompanhada de violência sexual, mas em algumas situações (especialmente em Bangladesh, na província da Etiópia e Tailândia), uma parte considerável de mulheres sofreu violência sexual exclusivamente por parceiro íntimo.  No nível individual, foi encontrada uma série de semelhanças nos padrões de violência por parte dos parceiros. Geralmente, as mulheres que eram separadas/divorciadas e que viviam com um parceiro masculino sem serem casadas relataram uma maior prevalência de violência física ou sexual, ou ambas, por um parceiro íntimo (OMS, 2005). 

Como agravante, em algumas circunstâncias, as meninas são vistas como cúmplice em casos de violência sexual e são responsabilizadas pelo ato sexual, seja forçado, violento ou não, em vez de seus agressores. Em alguns países, se o agressor negar o ato e não houver testemunhas, uma menina com mais de 12 anos de idade pode ser severamente punida por um estupro e outros tipos de agressão sexual (LANDINI, 2003).

De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Criança (UNICEF), nos países industrializados, 5% a 10% das crianças são vítimas de abusos sexuais com penetração. A UNICEF concluiu ainda que nos países mais ricos, todos os anos, pelo menos 4% das crianças sofrem de maus-tratos físicos. Por seu lado, uma criança em cada dez é vítima de negligência ou de maus-tratos psicológicos. O documento também aponta que, em todo o mundo, duas em cada três crianças são alvos de abusos corporais e todos os anos são mais de 500 milhões os casos que se tornam conhecidos.

Vários fatores colaboram para os baixos índices de notificação em todo o mundo. Dentre eles, Santos (1992) aponta a falta de conscientização social, o desconhecimento das atitudes a serem tomadas diante dos casos, medo de revanchismo e temor de transtornos legais ou acusação de falsa denúncia. No Brasil, até a presente data não foram realizados estudos para estimar a prevalência e a incidência do abuso sexual no país como um todo. No entanto, na última década, várias fontes revelaram que o problema tem presença marcante na nossa sociedade.

Conforme o Instituto Promundo e Noos, 51,4 % dos homens entrevistados afirmou ter praticado algum tipo de violência (física, sexual ou psicológica), sendo que 17% relataram ter forçado a companheira à prática sexual, compararam a companheira com outras mulheres, ridicularizaram o corpo e/ou desempenho sexual da companheira, praticaram violência psicológica para conduzi-la à prática sexual (SOUZA; ADESSE, 2004).

É notável a existência de poucos estudos no Brasil sobre esta temática. O presente estudo informa que a pesquisadora desconhece a proporção real de crianças afetadas pelo abuso e bem como os fatores associados à sua ocorrência. Algumas fontes de dados disponíveis referem-se às informações coletadas nos serviços que atendem crianças nesta situação: a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (ABRAPIA), o Programa de Atenção à Vítima de Abuso Sexual (PAVAS), o Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância de Campinas (CRAMI-Campinas), o Centro Regional de Atenção aos Maus Tratos na Infância do ABCD (CRAMIABCD) e o Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS), entre outras.

A detecção de ocorrências, por parte dos serviços, depende de um grande número de fatores, tais como: presença e gravidade de lesões resultantes do abuso; circunstâncias familiares e comunitárias que bloqueiem a comunicação; visibilidade da instituição e a sensibilidade de profissionais da saúde e da educação para a detecção de abusos, entre outros. A utilização científica de dados dos serviços é restrita, já que a literatura internacional indica que somente 3% dos casos são reportados (LEVENTHAL, 1998).

Como bem observaram Leal & César (1998), compreender e enfrentar o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes é um desafio para pesquisadores e profissionais. Isto porque requer a articulação das dimensões conceituais com as operacionais, das qualitativas com as quantitativas e das pesquisas observacionais com as de intervenção.

De fato, a política nacional que traça as diretrizes para a atuação do setor saúde na questão da violência no Brasil também reconhece o abuso sexual como uma questão peculiar, ao destacar a necessidade da “criação de eventos específicos para a discussão de questões polêmicas como o atendimento, encaminhamento e acompanhamento de vítimas de abuso sexual” (BRASIL, 2001).

Em decorrência, todas as normas penais, como mecanismo de controle da convivência social, devem ter limites precisos, marcados pelo reconhecimento da liberdade humana e, em geral, dos direitos fundamentais, sob pena de ineficácia, posto que sem fundamentação legal (art. 224, Código Penal).

É inegável a ocorrência de uma revolução sexual, nos últimos anos, que determinou profundas modificações nos padrões sexuais comportamentais das crianças e adolescentes e que influiu decisivamente para o alcance de uma maturidade sexual precoce por parte desses. Nesse sentido, a negação da capacidade de autodeterminação sexual estabelecida no art. 224 do Código Penal (CP), de forma irrestrita, a toda pessoa menor de 16 anos de idade, se mostra afastada do momento histórico-cultural experimentado, merecendo séria reflexão. A subtração ao adolescente do direito de exercer sua sexualidade, por não ter ainda alcançado a idade fixada por lei, foi imposta por concepções morais dominantes na sociedade.

Com o início de vigência do Código Penal de 1890, a quase unanimidade dos doutrinadores tendeu para o entendimento de ser a presunção em matéria sexual indiscutível, houvesse ou não consentimento da vítima, conhecesse ou não a idade desta na data do fato, sob a alegação de que a lei considerava o menor até a idade de 16 anos como incapaz de consentir livremente. Assim, seria inadmissível qualquer indagação acerca de sua honestidade e bons costumes.

Enfim, defendia-se que o consentimento do menor seria sempre juridicamente irrelevante, mesmo que tivesse desenvolvimento físico e mental superior a sua idade, ainda que de sua parte a iniciativa ou mesmo provocação para o ato sexual, sob o argumento de que a idade de 16 anos fazia parte do tipo e que as outras duas situações do art. 224, do CP, configuravam casos de presunção relativa, pelos seus próprios enunciados, o que não ocorria com a situação dos menores.

Tendo como perspectiva a prevenção de situações sociais de risco, a política preventiva implica na conscientização e mobilização da sociedade, em relação à proteção integral a que têm direito as crianças e adolescentes brasileiros (BRASIL, 1990).

O adolescente tem direito à educação sexual, ao acesso à informação sobre contracepção, ao sigilo sobre sua atividade sexual e sobre a prescrição de métodos anticoncepcionais, a optar por procedimentos diagnósticos, terapêuticos ou profiláticos e de assumir o seu tratamento. Os pais ou responsáveis somente serão informados sobre o conteúdo das consultas com o consentimento do adolescente (BRASIL, 2006).

A educação sexual deve ser integrada na educação cujo objetivo é a pessoa, o respeito, e certamente não separada de tudo isto e reduzida apenas a uma educação sobre a anatomia, por um lado, e a funcionalidade do órgão por outro. Os programas de prevenção do abuso sexual de menores a implementar nas escolas devem inserir-se nos programas de educação sexual ou nos programas de promoção para a saúde (ANDREOLI, 1998).

O conteúdo foi estruturado de acordo com as três modalidades de prevenção de maus-tratos sugeridas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) das Nações Unidas: primária, secundária e terciária. A prevenção primária tem por objetivo por eliminar ou reduzir os fatores sociais, culturais e ambientais que propiciam os maus-tratos (SANTOS; IPPOLITO, 2004).

As ações propostas buscam atingir as causas da violência sexual juntamente com a implementação de políticas sociais básicas, destacam-se aqui as ações educativas devem ser dirigidas a toda população, grupos de mães, pais, adolescentes, escolas e igrejas de todos os credos (SANTOS; IPPOLITO, 2004).

Ações voltadas para a prevenção da violência (BRASIL, 2006):

 

         Intensificar parcerias interinstitucionais e intergovernamentais e com a sociedade civil organizada, para a implantação e implementação de ações articuladas de promoção da cultura da paz, prevenção da violência, assistência e proteção a adolescentes vítimas de violência.

         Formentar a organização de Espaços Jovens, estimulando a participação comunitária e juvenil.

         Estimular a organização de pactos comunitários contra a violência intrafamiliar visando a não-legitimação institucional e social da violência, o empoderamento dos setores mais vulneráveis da comunidade, a valorização do papel comunitário na resolução de conflitos sem violência, acordando metas e valores coletivos.

         Reorganizar serviços de assistência às vítimas de violência, com as respectivas referencias e contra referências.

         Garantir a contracepção de emergência e a profilaxia das DST/AIDS em todos os serviços que atendam adolescentes vítimas de violência sexual.

         Garantir o apoio psicológico e social e o direito legal à interrupção da gravidez de adolescentes que sofreram violência sexual, caso seja a sua decisão pessoal. Garantir, também, os direitos daquelas que decidirem levar a gravidez adiante, com acompanhamento especificam e apoio psicológico e social, no pré-natal e no puerpério.

         Capacitar as equipes de saúde da família para orientarem as famílias, com ênfase na realização de ações educativas, sobre os fatores intervenientes na violência, para identificarem fatores de risco e para prevenção da violência contra crianças e adolescentes.

         Humanizar as práticas terapêuticas no atendimento de adolescentes no pré-natal, parto e nascimento, incentivando a presença dos parceiros nessas ações, para fortalecimento do vínculo da mãe e/ou pai com o bebê, como medida preventiva contra violência intrafamiliar.

         Esclarecer e fortalecer como dever profissional a denúncia da violência, cabendo lembrar que esta é obrigatória por parte do serviço de saúde e que deve ser encaminhada às Varas de Infância e Juventude e/ou Conselhos Tutelares.

Simultaneamente, devem-se desenvolver ações que visem a responsabilização do abusador e assistência a lhe ser prestada, contribuindo para quebrar o ciclo de impunidade e, consequentemente, o ciclo do abuso sexual (BRASIL, 2006).

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno complexo, envolvendo questões jurídicas, psicológicas, sociais para compreender as múltiplas facetas do abuso.

Já que a violência sexual constituir-se como uma violação de quase todos os direitos fundamentais, não adianta apenas se procurar punir o autor do fato delituoso para que se apaguem todos os traumas de uma situação de abuso. É sabido que as vivências abusivas tornam a mente e o corpo desprovidos de investimentos. A vida pode propiciar ao indivíduo vitimado experiências restauradoras que permitam que ele possa tornar-se sujeito do desejo e do fazer desenvolvendo o potencial criativo do seu ser, de modo que as marcas do passado deixem de pesar e de obstaculizar as vivências do presente e as perspectivas do futuro.

Por fim, buscar-se-á uma reflexão a respeito dos que se deparam e prestam assistência às vítimas de abuso sexual, que devem ser incentivados a serem profissionais mais sensíveis e “humanos”. Estes devem buscar uma maior integração e aproximação com as vítimas, respeitar a individualidade de cada caso e seu sigilo, como também estimular a resiliência nas mesmas.

Há necessidade de mais pesquisa sobre o abuso sexual contra menores (crianças e adolescentes): prevalência, incidência, desdobramentos legais e consequências para a vida futura da vítimas. Devem ser criados e mantidos equipes multidisciplinares, capazes de lidar com os diversos aspectos do problema.

 

 

 

 

 

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