“Esse homem foi crucificado no monte Gólgota,
ao lado de Jesus. Mas, quem era ele? ”
O Centurião[1]
O sargento Benevides estava impressionado com a cena protagonizada por aquela adolescente no Montelupo. Ele observara seu olhar de desespero quando ela se colocou à frente de Carlos, de braços abertos, para defendê-lo de uma agressão imaginária.
─ Eu estava em uniforme de passeio e nem portava armas. O que a teria assustado tanto? indagou-se.
Benevides, embora acostumado, por força do ofício, a quase todos os tipos de comportamento e reações, ficou pensativo.
─ Ela pensou que o estava defendendo do quê?
O militar lembrava-se da circunstância em que conhecera Carlos. Estava fazendo uma caminhada por aquele bairro, quando observou uma senhora grávida, moradora de rua, pedindo ajuda. Embora estivesse de folga, Benevides correu a amparar a mulher, que já estava quase caída no chão, gritando de dor. Enquanto a socorria, um rapaz aproximou-se e passou a ajudá-lo.
─ Meu nome é Carlos, e trabalho no restaurante aqui em frente. Vi quando o senhor começou a prestar socorro a esta senhora. Já liguei para o Resgate, que deve estar a caminho. Trouxe, também, água mineral gelada, não sei se ajuda, disse com simplicidade.
─ Obrigada, moço, disse a mulher, pegando a garrafa.
Benevides ajudou-a a beber, acomodou-a na calçada enquanto esperavam a chegada da ambulância.
─ Fique calma, que tudo vai dar certo, dizia, segurando suas mãos com carinho.
A mulher agradeceu aos dois benfeitores e tranquilizou-se, embora sentindo as dolorosas contrações.
A ambulância logo chegou, e os paramédicos a colocaram em uma maca com todo cuidado e a levaram rapidamente a um hospital próximo.
Carlos e Benevides foram ao restaurante tomar um merecido café, e meia hora depois ligaram para o hospital.
─ A ajuda de vocês foi providencial, disse o plantonista quando Benevides identificou-se. Logo após sua entrada, ela deu à luz um menino saudável, e ambos estão passando bem.
─ Obrigado. Vamos providenciar um enxovalzinho para o menino, disseram quase ao mesmo tempo.
Os dois homens sorriram, mostrando no rosto a expressão de missão cumprida.
─ Esse é um trabalho que faço com alegria, disse o militar. Nessa situação, a mulher fica muito vulnerável e precisa de ajuda física e moral.
─ Sinto um aperto no coração quando vejo uma mulher grávida, ainda mais no estado em que ela se encontrava, falou Carlos.
No dia seguinte, Benevides visitou o recém-nascido e sua mãe, e com surpresa encontrou Carlos no quarto daquela senhora. Ele estava entregando-lhe um envelope com algumas notas e tíquetes de Vale Alimentação. Quando Benevides entrou, Carlos dizia à mulher:
─ Com esses cupons a senhora poderá comprar leite para o neném e comida por três meses. Quando acabar, pode procurar-me no restaurante que a ajudarei, disse entregando à mulher um cartão de visita com seu telefone particular.
Ao ver Benevides, Carlos abraçou-o, dizendo:
─ Eu tinha certeza de que não me livraria de você tão facilmente!
O sargento entregou para a mulher um pacote com roupinhas e outros suprimentos que lhe seriam úteis ao sair do hospital.
─ Tem aqui meu telefone da Central e também de minha casa. Ligue quando precisar. Não se esqueça de nos convidar para o primeiro aniversário!
Assim, os dois iniciaram uma amizade sincera, que se aperfeiçoaria com o tempo. Benevides lembrava-se da preocupação de Carlos com a mulher que socorreram:
─ Ela estava grávida; temos o dever de ampará-la, dizia emocionado, parecendo que estava prestando ajuda a uma pessoa muito querida.
Esses pensamentos fizeram Benevides mergulhar em profunda meditação. Seu espírito amadurecido iluminou-se e ele finalmente, deu-se conta do ocorrido.
─ Acho que já nos encontramos em outro ciclo, pensava o militar. Isso talvez esclareça a quase imediata estima recíproca, a disposição e a mesma emoção que sentimos ao auxiliar aquela mulher em situação de vulnerabilidade.
Na realidade, em outro ciclo, Benevides, Carlos e Verinha, materializados em outros seres, já haviam se encontrado antes, em uma caverna no meio do deserto de Jericó, onde a então Salomé, grávida, foi morta por acidente em uma luta entre soldados romanos e um salteador.
O centurião que comandava aquela tropa fora bondoso com o malfeitor, quando este pedira, em lágrimas, que lhe permitisse despedir-se de sua mulher morta, e disse que ela estava grávida.
O centurião, emocionado, permitiu e mandou que os soldados sepultassem a mulher, adotando uma atitude de respeito impensável naquela época, e pela qual ele fora severamente repreendido por seus superiores.
Esse incidente ocorrido em lugar e condições rústicas, em outro estágio da civilização, estabelecera um liame eterno entre aquelas três almas.
─ Será esse, então, o pavor que se apoderou daquela menina quando me viu falando com Carlos? Bem que seu modo de olhar me sensibilizou, como se já houvesse cruzado comigo, pensou o sargento.
Benevides compreendeu, então, mais por intuição que por raciocínio lógico, o laço imaterial que unira seu espírito com aquelas duas pessoas, hoje em harmoniosa convivência humana, cada qual quitando seus débitos com a coletividade celestial na exata proporção de suas culpas, ou recebendo lições e galgando degraus de aperfeiçoamento para ascensão aos planos superiores, conforme determinado pelo Senhor do Universo.
[1] Méroe, Mário de. O Outro (romance baseado em uma passagem bíblica), cap 11, p. 224 e segs, Ed. Paco Editorial, 2013.
O livro-base encontra-se disponível no site Divulga Escritor: https://www.divulgaescritor.com/products/livro-o-outro-autor-mario-de-meroe-comprar/