O COLIBRI VAMPIRO
JAX
Otacílio levava uma vida bastante... normal, de acordo com os padrões humanos e citadinos vigentes. Logo que terminara seu curso de Administração na faculdade, recebeu convite para trabalhar em uma empresa de médio porte, na qual lhe pagavam bem e veio a acomodar-se. Já estava para completar seu sexto ano de serviço, sem qualquer preocupação em mudar de emprego por ora. Namorava Natália, garota que conhecera em escritório vizinho ao seu – lá se iam uns três anos -, sem que nenhum dos dois pensasse mais seriamente em passar de vez a coabitar o mesmo imóvel ou, muito menos, em casar-se. Ambos moravam em apartamentos alugados e tinham seu próprio automóvel, revezando-se no uso de um ou de outro veículo conforme programavam.
O escritório em que Otacílio trabalhava não distava de casa, o que lhe permitia utilizar o ônibus para ir e vir, na maior parte das vezes. O carro (seu ou da namorada) era usado, principalmente, para o lazer de uma festa, jantar, teatro ou cinema à noite e nos fins de semana.
Outros lazeres do personagem incluíam ouvir música, brasileira e estrangeira, ir à praia e acompanhar os jogos do Fluminense Futebol Clube, sobretudo pela televisão, no conforto de seu apartamento. As idas ao estádio eram mais esporádicas, apesar da insistência do Marcão, seu colega de trabalho e torcedor bem mais flunático do que ele ou demais companheiros comuns de torcida.
A vida transcorria relativamente mansa, descontadas, evidentemente, situações típicas de distúrbios estomacais ocasionados por eventuais excessos de comida ou de bebida, e problemas de doenças do pai e da mãe, que se mudaram para outra cidade, ou de outro familiar, como o irmão que casara e vivia no subúrbio, raramente aparecendo para visitá-lo. Com esse irmão, fora os pais, um dos poucos pontos em comum que restaram desde a infância era o gosto por passarinhos, embora já menos forte da parte de Otacílio. Quando se reuniam, em todo caso, sempre se recordavam dos canários que criaram quando crianças, dos livros e álbuns de figurinhas partilhados sobre a passarada. Trocavam uma ou outra informação recentemente aprendida sobre o assunto, mas a conversa acabava por desviar-se e concentrar-se em questões de família, emprego, custo de vida, futebol e amenidades diversas.
Do seu apartamento, Otacílio escutava, cada vez mais, o ruído dos carros e das pessoas na rua, em vez dos sons dos raros passarinhos que ainda apareciam por ali. Certa manhã, quando encostava a janela do quarto, antes de sair para o trabalho, surpreendeu-se com um colibri que voava bem defronte. Achou curiosa a presença do bicho, ainda mais que não havia flores capazes de atraí-lo. Apesar disso, e não aparentando medo do morador, certamente visível através da janela, o colibri manteve-se parado no ar por breves instantes, a bater suas asas com o vigor característico da espécie, enquanto parecia estudar o ambiente. Talvez estivesse em busca de néctar, pensou consigo Otacílio, que também ficou a olhar e a “estudar” o insólito visitante. O pássaro possuía plumagem escura, de tons verde-azulados comuns à maioria dos beija-flores vistos no passado. Apenas o bico parecia diferente do que Otacílio podia lembrar-se, pois sua coloração era fortemente grená. Após contemplar o colibri por mais uns segundos, o rapaz fez um discreto aceno de despedida e partiu para o escritório.
Nos dias seguintes, o passarinho voltou a aparecer e a postar-se diante da janela, como que a observar Otacílio e a deixar que este também o observasse. O fato pareceu tão inusitado que até animou o rapaz a telefonar para o irmão e contar-lhe a novidade. Embora se mostrasse igualmente surpreendido e assegurasse que iria ao apartamento em breve, para ver o colibri, o irmão não o fez naquela semana, nem nas seguintes, em clara manifestação de sua habitual falta de vontade numa convivência maior.
No sábado, já de bermudas e camiseta, pronto para uma caminhada pela praia, Otacílio aproximou-se da janela aberta e novamente viu o colibri, que batia suas asas, confiante, como que acostumado à presença do rapaz. Apoiando os dois braços no parapeito da janela, Otacílio ficou a olhar, sorridente, o passarinho até que algo ainda mais inesperado ocorreu. Subitamente, o beija-flor voou na direção do braço esquerdo do rapaz e cravou seu bico na veia estendida, como se desejasse sugá-la. Foi tão desconcertante a atitude da ave que deixou sua vítima sem reação. Fora a surpresa, aliás, Otacílio não sentiu qualquer dor com a bicada. Pelo contrário, a estupefação inicial deu lugar, imediatamente a seguir, a uma sensação de paz e mesmo de prazer, como se o colibri o estivesse livrando de algum mal ou de insuspeitado peso na consciência.
Depois de o passarinho afastar-se, Otacílio surpreendeu-se ao constatar que não havia sinal de ferida em seu braço. Um pouco no ar pelo ocorrido, limitou-se a encostar a janela e a seguir para a praia, onde caminhou por cerca de uma hora, como de costume, mas imerso em tranquilidade acima do habitual. Despreocupando-se da eventual intromissão de pivetes, desfrutou, como nunca, do sol e da brisa agradável do mar. Passou o resto da manhã na praia, na companhia de Natália, que também lhe pareceu mais bonita e prazerosa do que em qualquer outra ocasião anterior. Almoçaram em restaurante próximo, encontraram amigos e passaram um ótimo dia.
No domingo, Otacílio acordou superdescansado, sentindo no corpo o vento suave que entrava pela janela. Enquanto olhava as paredes e o teto do quarto, perguntando-se que horas seriam, percebeu a chegada do colibri, que entrou e pairou alguns momentos no ar, direcionando-se a seguir para um dos braços do rapaz. Pousou ali e mais uma vez cravou o bico grená na veia, sem provocar sensação de dor ou de desconforto para Otacílio, que ficou a observar tudo, quase inerte, incapaz de reagir. Após a partida do animalzinho, o rapaz permaneceu na cama, procurando refletir sobre o que estava ocorrendo, mas ainda sem preocupação maior. Teria sido alucinação? Olhando melhor o braço, verificou a existência de um ponto na veia, como a cicatrização de uma coleta de sangue. Se tomasse por prova aquele sinal que não havia percebido até então, ele estaria diante do caso assombroso de um colibri que sugava sangue. Talvez fosse esta a razão da cor do bico do animal.
Naquele momento, Natália despertou. Otacílio quase se esquecera da namorada ao seu lado. Pela primeira vez, preocupou-se com a possibilidade de o pássaro vir a atacá-la. Pensou em contar-lhe o caso, pedir-lhe que deixasse examinar suas veias, mas logo se deu conta da inutilidade de fazê-lo. A história era demasiado esdrúxula para que mesmo sua amada o levasse a sério. Melhor deixar o assunto de lado por ora.
Na segunda-feira, o beija-flor voltou a bicar Otacílio, que tampouco reagiu, entregando-se ao estranho visitante. Depois de o bicho ir-se embora, a sensação de paz transformou-se em letargia, que o prostrou na cama e o fez chegar atrasado ao serviço. Ao longo da mesma semana e dos dias seguintes, a situação repetiu-se, ocasionando novos atrasos, que começaram a chamar a atenção do chefe e dos colegas do escritório. Marcão quis saber por que o amigo, que nunca se atrasara antes, passou a perder a hora do trabalho. Comentou haver notado que os atrasos não coincidiam com jogos do Fluzão, os quais poderiam constituir razão das mais justificáveis, no seu entender. Otacílio procurou desconversar e pôr a culpa no relógio, simplesmente.
Por mais que pensasse no assunto, o rapaz não conseguia entender sua incapacidade de resistir às sugadas do beija-flor. Reconhecia até que desejava as vindas do colibri, que invariavelmente entrava em seu quarto todas as manhãs para bicar-lhe as veias e incutir-lhe a estranha sensação de paz, como se as pequenas porções do sangue retirado servissem para baixar sua pressão. Conjecturou que o pássaro se assemelhava aos vampiros, não aqueles espécimes específicos de morcegos sugadores de sangue, mas os fictícios, imortalizados pela literatura e pelo cinema, que dominavam as vítimas com o poder da mente demoníaca. Ele transformara-se em vítima do colibri vampiro, sem ter forças para opor-se à doação de sangue que lhe fora imposta.
Aproveitando breve instante em que se julgou disposto a dar um basta na situação, Otacílio fechou todas as janelas do apartamento à noite e ligou o ar condicionado do quarto. O aumento do custo da eletricidade seria compensado pelo preço da liberdade que recuperaria a partir do dia seguinte. Dormiu contente com sua iniciativa, mas, ao acordar, descobriu que o colibri já estava colado ao seu braço, a sugar como de hábito. Apesar da sensação letárgica que sempre o acometia em tais circunstâncias, conseguiu desviar os olhos para a janela, que permanecia tão fechada como ele a deixara. Quando se recobrou da sonolência, o passarinho já se fora, sem lhe dar oportunidade de saber de que forma entrara e saíra.
A partir daí, a vida outrora mansa do rapaz foi-se desfazendo de modo crescente. Os atrasos no trabalho multiplicaram-se e provocaram as primeiras reprimendas do chefe, decepcionado pela súbita falta de pontualidade de seu empregado. Otacílio bem que tentou compensar os atrasos, permanecendo além da hora do expediente, mas sem resultado. O fato é que seu poder de concentração e sua produtividade decresceram. O chefe passou a detectar erros cometidos nos serviços que o empregado prestava e a impacientar-se com essa perda de eficiência.
Natália e os amigos procuraram ajudá-lo, mas Otacílio não podia revelar-lhes o problema real que enfrentava. Tomariam-no por louco, com toda razão, por sinal. Continuou em sua batalha solitária, em busca de um meio de desvencilhar-se do terrível pássaro que lhe sugava as forças. Planejou até matar o colibri. Cada vez que o bicho aparecia, contudo, nada conseguia fazer contra ele, nem sequer se proteger dos seus ataques sanguinários. Uma tarde, comprou um bebedouro para beija-flores e encheu-o com água e veneno, na esperança de que o animal a tomasse e morresse. Tudo em vão. A água permaneceu intocada no bebedouro até mudar de cor e secar.
Antes tranquilo, sentindo-se de bem com a vida, Otacílio começou a enervar-se na maior parte do tempo, entre uma e outra visita do vampiro emplumado. Certa noite, enquanto tomava banho, percebeu algo estranho nos braços e nas pernas, como se fossem pequenos espinhos. Temeu tratar-se de alguma doença infecciosa, causada pelo colibri. Na manhã seguinte, ao voltar a examinar o corpo, constatou, com horror, que os aparentes espinhos haviam crescido. No final do dia, com o auxílio da lupa emprestada por um colega do escritório, apavorou-se ainda mais ao verificar que se tratava de penas que principiavam a despontar em seu corpo.
Tentou arrancá-las com um alicate inutilmente. Fora a dor que experimentava com a extração dos incômodos apêndices, Otacílio via as penas renascerem no dia seguinte. Seu único recurso foi passar a usar camisas de manga comprida para ocultar a plumagem em formação. A mudança no vestuário causou estranheza entre os colegas no escritório e reforçou a avaliação de seu chefe de que, mais cedo ou mais tarde, teria de dispensar o empregado, cujo comportamento já não era o mesmo.
Além dos problemas acrescidos no trabalho, o surgimento das penas precipitou a decisão de Otacílio de terminar o namoro com Natália, já que não havia como ocultar da namorada a deformação que seu corpo sofrera. Pareceu-lhe que ela aceitou a separação resignadamente, como se já pressentisse esse desfecho, em virtude da nítida mudança de comportamento do rapaz nos últimos meses. Consolou-o pensar que, ao afastar-se dela, pouparia sua ex-amada do risco de vir a tornar-se outra vítima do colibri vampiro.
Poucos dias depois, ao constatar que as penas também começavam a brotar em seu pescoço, Otacílio cuidou de solicitar férias, o que o chefe aceitou num misto de irritação e de alívio. Preocupado com o amigo, Marcão insistiu novamente em que fossem juntos ao Maracanã para ver o Fluminense jogar naquela noite, o que foi recusado sob a alegação de cansaço. Marcão dispôs-se então a ir ao apartamento do rapaz, a fim de assistirem à partida pela televisão. Ouviu, indignado, a resposta de Otacílio de que, na verdade, o clube e o futebol já não lhe interessavam mais.
Recolhido à solidão do apartamento, o rapaz pôs-se melancolicamente a mais uma vez buscar uma solução ou, pelo menos, uma explicação para seu caso. Perguntava-se, angustiado, se fora acometido de delírio bizarro, se ingerira algum alucinógeno sem saber, se vinha sendo vitima de conspiração e até mesmo, no auge do seu desespero, se teria cometido pecado imperdoável. Essa conjectura extrema, de cunho religioso, denunciava a absoluta aflição que o dominava, logo ele, que, desde pequeno, se desapegara de qualquer crença em divindades. Lamentou-se das tantas vezes em que debochara do irmão, quem, diferente dele, manteve o cordão umbilical com a fé e a doutrina católicas, embora nem sempre fiel praticante do décimo mandamento.
Recobrando, em parte, a serenidade, pensou conformadamente no quanto a vida de alguém pode mudar da noite para o dia. Lembrou-se das leituras da adolescência, como as obras do escritor francês Albert Camus, sobre o absurdo da existência humana. Sentiu-se vítima de uma epidemia de peste, como a enfrentada por personagens cujo nome já nem conseguia recordar. Tola comparação, raciocinou a seguir, somente ele contraíra a doença. Muitas lembranças e imagens mais voaram por sua mente, causando certa sonolência.
Resolveu dormir e, na manhã seguinte, procurar seu médico. Desde as primeiras investidas do beija-flor, nunca havia considerado mais seriamente recorrer a cuidados médicos. Julgava que o Dr. Valdir ou qualquer outro profissional o tomaria apenas por louco se dissesse estar sendo sugado por um passarinho. As penas em seu corpo poderiam demonstrar, todavia, que sua história era verdadeira. A menos, claro, que elas fossem pura imaginação sua. Ainda neste caso, ficaria evidente que ele necessitava da assistência médica de um psiquiatra, que o Dr. Valdir não teria dificuldade em indicar-lhe. O importante, concluiu, era buscar a terapia apropriada para livrar-se do mal alado.
Foi neste momento que Otacílio se deu conta de que o colibri não aparecia há dias. Para ser exato, o vampiro emplumado deixara de visitá-lo desde que as penas despontaram nos braços e pernas do rapaz. Animou-se a pensar que tudo não passava de um pesadelo, prestes a terminar. Deitou-se com essa tênue, mas derradeira esperança.
Ao despertar, Otacílio sentiu-se totalmente refeito da angústia e da melancolia experimentadas na véspera. O sol que entrava pela janela iluminava e parecia ampliar o quarto, a escrivaninha, a cadeira e a cama, aos pés da qual avistou a calça e o paletó de pijama, como se ele se tivesse desnudado durante a noite. Ouviu alguém chamá-lo do lado de fora, através da janela. Era o colibri que ali pairava de novo, em pleno ar, à sua espera. Otacílio voou em sua direção, consciente de que se transformara, ele próprio, em mais um passarinho disposto a alçar voo e a procurar horizontes além da compreensão e da sabedoria dos homens ou dos deuses. Somente então descobriu que seu novo amigo não bicara suas veias para sugar o sangue, e sim para incutir nele o gérmen de uma nova dimensão. Nem preocupava Otacílio saber se essa nova dimensão seria melhor ou pior. Bastava haver compreendido como se geram mudanças a partir do choque entre as sensações de paz e de aflição, tais como ele havia experimentado desde a intromissão do suposto vampiro.
Juntos partiram na missão, agora conjunta, de atrair possíveis adeptos.
in Traços e Troças (2015)
Editora Lamparina Luminosa, S.Bernardo do Campo, SP