Jovelucênio era seu nome de batismo. Fruto da “inventiva” nomenclatura familiar brasileira, com seu gosto tão peculiar em formar “frankensteins” linguísticos pela combinação de partes dos nomes dos pais, avós, tios e outros entes queridos.
Na escola e no trabalho, para felicidade do batizado, o sobrenome Mourão virou seu nome de guerra. Da mesma forma, no bar, todos o chamavam assim, embora a maioria preferisse reverenciá-lo como “Pensador”, título honorífico que merecidamente conquistou ao longo dos anos de freqüência.
Talvez por força de seu expediente de trabalho iniciar-se meio-dia, Mourão adquiriu o hábito de comparecer ao bar antes do horário do batente, para saborear sua cerveja, acompanhada de diferentes tira-gostos e do PF do dia. Só ou na companhia de amigos, sentava-se sempre na mesma mesa, no fundo do estabelecimento, de onde via todo o movimento interno, além de boa parte da circulação externa.
Nas noites de sexta-feira, o Pensador vinha junto com os colegas do banco “encerrar o expediente” naquela mesa, que os aguardava, cativa. Nesse dia, no escritório, todos ficavam a postos para o tradicional murro na mesa e o grito “é hoje!” com que Mourão os convocava à noitada. O bar mudou de dono em duas ou três ocasiões, mas os sucessivos proprietários tiveram o cuidado de preservar o espaço reservado ao principal cliente e seu séquito, bem assim de manter a qualidade do serviço por ele requerido.
Para sua sorte, o Pensador sempre desfrutou de boa saúde, estômago e fígado em plenas condições de provar e saborear diferentes iguarias disponíveis no estabelecimento. Fossem costeletas de porco, moqueca de peixe, ovos de codorna, azeitonas e salaminho, tudo lhe era bem-vindo e degustado. Tinha, não obstante, certa predileção pelos pasteizinhos, fritos ou assados, de carne ou de camarão, e pelo queijo minas, que já pedia cortado em cubos, comidos ao natural ou temperados a seu gosto com alho, azeite e outros condimentos combinados sob a inspiração do momento.
Além da maneira prazerosa com que o Pensador saboreava os petiscos, o proprietário e o pessoal do bar sentiam satisfação ao vê-lo chegar, pois o homem era um autêntico “chamariz” da freguesia. Mal se sentava à mesa e logo vinha alguém mais, atraído pela conversa boa e pelas costumeiras tiradas filosóficas de Mourão. Pouco importava qual o tema do momento. Em meio ao bate-papo descontraído, seu rosto repentinamente como que se iluminava e lá vinha o comentário brilhante, a frase lapidar, de conteúdo quase sempre bem humorado, no tom certo, próprio para deleitar a todos, mas incapaz de ofender até a mais pudica das velhinhas que por acaso se aventurasse naquele ambiente.
Algumas tiradas do Pensador tornaram-se bem conhecidas e costumavam ser repetidas pelos que as ouviam ou pelo autor, com uma graça aparentemente eterna, tal qual “momento de amor tão grande que sempre parece novo”, como ele mesmo formulou. Seu dito mais lembrado, entre tantos, produziu-se quando lhe perguntaram, certa vez, se temia a morte. Ele respondeu tranquilamente que não, embora reconhecesse não gostar de velórios, que tendia a evitar. E acrescentou que gostava tão pouco de velórios que, se pudesse, não iria ao seu.
O Pensador respeitava as tragédias, mas tratava de mantê-las distantes da sua mesa do bar. Como ele mesmo dizia, as ruas e o dia-a-dia já dispõem de tristezas suficientes para todos os gostos, mas os bares têm de ser os bastiões da alegria, da música, da poesia e do amor. Amor, por sinal, era tema que não faltava nem poderia faltar naquela mesa. Animados ainda mais por aquele interlocutor bonachão que exalava simpatia e compreensão, os frequentadores da mesa desfiavam histórias, suas ou de outrem, em geral divertidas, perfeitas, como dizia Mourão, para acompanhar a boa cervejinha e os pastéis. Caso determinada história enveredasse pelo rumo do patético ou do trágico, sobrava inspiração ao Pensador para trazer palavras de consolo ao narrador que expunha - tentando inutilmente disfarçar - seu próprio drama. À oportuna consolação, seguia-se a necessária animação propiciada por algum caso assemelhado, mas de rumo diverso, ao qual o bom Mourão agregava outros mais, em profusão, até fazer o ambiente retornar à total alegria. “Como esse homem sabe de coisas!”, exclamavam admirados seus parceiros de mesa.
O Pensador, como que a confirmar sua ampla vivência, costumava aconselhar os colegas mais jovens, recém-ingressados no banco, a não cometerem o erro comum de gastar todo o dinheiro do salário com festas, bebidas e prazeres. Salientava-lhes a importância de economizar: “poupem! Poupem sempre...para mais festas, bebidas e prazeres!”
Sua reconhecida aversão aos enterros também lhe servia de justificativa para não ficar “enterrado” no trabalho, como alguns de seus colegas, cuja abnegação lhe parecia exagerada e nada conducente à verdadeira felicidade. Se alguém, dizia ele, se dedicasse à tarefa de estudar a burocracia a fundo, com sinceridade e espírito científico, certamente detectaria várias espécies de burocratas, como os que se aferram ao cumprimento do dever em busca de poder e dos mais altos escalões da firma, os que se atrelam ao cumprimento dos horários simplesmente por nada mais saberem fazer na vida e os que se deliciam em conhecer normas e regulamentos unicamente pelo prazer mórbido de dificultarem a vida dos cidadãos comuns. Em outra de suas tiradas, conjecturou que o burocrata típico seria o que somente lê os papeis que escreve depois de ouvir o eventual elogio do chefe.
Jogar com as palavras era outra das habilidades de Mourão. Quando criança, demonstrava destreza nos trocadilhos corriqueiros, em que se adulteram letras ou sílabas de uma palavra de forma a alterar seu significado. Com o passar da idade, trocou essa modalidade pelo uso de vocábulos que, aparentemente usados fora de contexto, davam sentido inesperado à frase. Em mais uma rodada de conversa solta, típica de bebuns, sobre o que seria viver, o Pensador sentenciou, com a habitual expressão feliz e iluminada, que vivo é quem morre de humor pela vida. As expressões de simpatia a esse “achado” deram lugar ao riso quando um dos presentes, encafifado, resolveu perguntar se Mourão dissera “humor” ou “amor”. A resposta veio pronta, com requinte de gentileza: “como você preferir, meu amigo. O que seria de nós sem o dom da livre escolha?”
Não eram só o bom humor, a fala mansa e pausada, o ar camarada e a capacidade inventiva que faziam do Pensador alguém apreciado e contagiante. Conversa vai, conversa vem, praticamente todos ficaram cientes da fidalguia de Mourão, que, ao perceber na rua alguém necessitado, solicitava discretamente ao garçom que lhe levasse um sanduíche, pastel, o que fosse, para ao menos atenuar a necessidade imediata. Sempre lembrava a esse garçon o cuidado de não revelar quem fora o benfeitor. Maledicentes haveriam de interpretar isso como sinal de que o Pensador se escondia no anonimato para não vir a ser importunado pelos mendigos. Os amigos de verdade sabiam, no entanto, que Mourão se espelhava no exemplo bíblico do bom samaritano, que jamais espera agradecimento ou retribuição pelo bem que faz.
Temas religiosos não costumavam aparecer, todavia, nas conversas do Pensador. Em raras oportunidades, alguém ouviu-o falar do bom Deus, em possível sinal de que acreditava Nele, mas não tanto na religião.
A turma do contra também tentava, vez por outra, levantar suspeitas de que o Pensador teria problemas em casa, já que nunca se fazia acompanhar por sua esposa ou pelo filho no bar. Esses abutres da espécie humana logo tinham de recolher-se à sua mediocridade, contudo, pois a maioria dos frequentadores não nutria dúvida de que Mourão era um pai de família feliz, que não se furtava em falar carinhosamente da mulher e do filho único. A razão para nenhum dos dois ali aparecer residia na incompatibilidade de horários. D. Nair trabalhava em horário integral e o filho, além de muito estudioso, aproveitava as horas livres para sair com a própria turma. Nenhum demérito, portanto, havia na presença “solitária” do Pensador no bar.
É chegado o tempo, porém, de pôr amigos e desafetos para fora do bar. A noite de sexta-feira adentra a madrugada de sábado, fazendo com que o sábio Pensador se despeça e lembre a todos de que precisa descansar, para dedicar o fim-de-semana à sua querida família e recarregar as baterias para a próxima rodada de reflexões (ou, como ele gosta de conceituar, de “flexões mentais”).
In “Ibitinema e Outras Histórias”
Ed. Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP, 2016.