O Segredo dos Vasos
Mário de Méroe
Janeiro/2017
O mestre Houaiss, em seu precioso dicionário, define vaso como um “recipiente côncavo, de vários formatos, próprio para conter líquidos ou sólidos”.
Conceito simples, conciso e adequado; entretanto, nem de longe reflete a inapagável impressão que se incrustou em minha memória, com a presença de dois vasos gregos retratando a mitológica luta entre o herói Hércules e o leão da Nemeia[1], colocados à entrada do apartamento vizinho ao meu.
Na realidade, tratava-se de um par de lindos vasos cerâmicos, de produção artesanal, originários de uma cidade do interior paulista, trazidos pelos simpáticos vizinhos, e que ornamentavam o desolado corredor do meu pavimento.
Mas esta narrativa é minha, e eu os descrevo como quiser!
Os tais vasos (chamados, elegantemente, de ânforas) traziam, em sua gênese um segredo, algo maravilhoso embora raro: uma evocação de gentileza, serenidade, paz, a alegria calma dos campos, que emanava de seu interior e que encontrou abrigo em minha sensibilidade já desgastada pelo mau-humor paulistano.
A presença daqueles vasos suavizou a tensão existente no pavimento, deploráveis resíduos de antigos antagonismos não resolvidos...
Assim, todos os dias, quando eu saía da residência para o corredor, ao passar pela dupla eu até sentia os silenciosos cumprimentos, aos quais respondia mentalmente, feliz com a civilidade dos vasos.
Todos os moradores do pavimento, instintivamente prestavam reverência à dupla. Os responsáveis pela limpeza se esmeravam em seu tratamento, e os garotos se esquivavam de chutá-los, como é praxe entre a espécie. O famoso Miguelzinho, quebrador oficial de coisas, cautelosamente passava ao largo daquelas preciosidades.
Até a poderosa atleta vizinha, um modelo aperfeiçoado de Atena, a deusa grega da guerra, suavizava sua energética expressão, sob os efeitos daqueles delicados enfeites.
Mas comigo, a “coisa” era mais profunda! Havia uma conexão espiritual, espécie de WiFi anímica. Além das cortesias habituais, diárias, quando eventualmente cessava o fornecimento de energia elétrica no prédio e eu tinha de subir as escadas pelos escuros corredores, ao chegar em meu pavimento, atrapalhado pela escuridão, eles pareciam emitir uma luz âmbar, indicando-me a porta de minha residência!
Assim, tudo respirava paz e harmonia, até que ... trágico dia!
Ao adentrar o corredor, logo me deparei com a indesejável aura da antiga hostilidade. Surpreso, percebi então que meu espírito “não pegava mais” o sinal de amabilidade, ao qual sempre me conectava. Senti que algo terrível acontecera. Lembrei-me de uma célebre canção sertaneja[2], sucesso especial de Tonico e Tinoco:
“Na minha viagem de volta, qualquer coisa eu cismei, vendo a porteira fechada e o menino não avistei”.
Olhei para os lados e não encontrei mais os vasos. Teria eu, aturdido pela idade e pela surpresa, me enganado de pavimento?
Mistério....
Esse sombrio pensamento fez afluir à minha memória as palavras do célebre indianista[3]:
“Que novos males nos resta de sofrer? — Que novas dores, que outro fado pior Tupã nos guarda? — As setas da aflição já se esgotaram, Nem para novo golpe espaço intacto Em nossos corpos resta”.
Desta vez, pude sentir, duramente, os eflúvios da velhice! A confirmar minha desdita, nesse momento desceu pelas escadas um jovem, conhecido pelas suas habilidades em computadores e tralhas semelhantes, que me cumprimentou sorridente. Arrisquei a pergunta:
─ Você se lembra de um par de vasos que havia aqui?
Sem desfazer o costumeiro sorriso, ele olhou para as portas de todos os apartamentos do pavimento, ajustou os óculos e detonou minhas esperanças, com a espontaneidade da juventude:
─ É, vazou!!!
Disponível em:
https://www.msmeroe.org/o-segredo-dos-vasos/
[1] Nas ânforas acima, de 540 a.C, vemos Hércules executando um de seus doze trabalhos, neste caso, derrotando o leão da Nemeia A criatura era filha dos monstros Ortro e Equidna e após vencer Hércules uma vez, foi derrotada na segunda ao ser estrangulada. Ainda segundo a lenda, a criatura derrotada subiu aos céus e se transformou na constelação de leão.
Embora soubesse o resultado da luta, o ceramista fez questão de representar o leão de Nemeia com a mesma imponência de Hércules, deixando evidente que o respeito aos adversários era um traço muito importante na cultura grega.
Disponível em:
https://thevintagegallery.blogspot.com.br/2014/09/a-ceramica-grega-parte-2-formas.html
[2] O Menino da Porteira, Teddy Vieira (1922-1965), gravada, originariamente, por Luizinho, Limeira e Zezinha. Posteriormente, a música foi gravada por quase todas as duplas e cantores sertanejos.
[3] Gonçalves Dias (1823/1864), poeta indianista da geração romântica. I Juca-Pirama – VI.