O Silêncio do Tempo
Quer definir a cor do silêncio que a rodeia. A quietude das horas leva-a a querer decifrar abstrações que gemem ao seu entorno. A síntese da existência está em ser, não em ter, mas ela vive as contradições inerentes aos seres. Tem a mania de sentir e querer decifrar enigmas. Quer criar algo, será ponto de partida para o inusitado?
Olha o seu interior, num ritual de amor coroando a felicidade que lhe acompanha. As horas passam velozes e os momentos morrem sem a sua permissão. Há pensamentos que lhe seguem, vão mordendo o seu calcanhar para que não se esqueça da vida. Recolhe os retalhos de si mesma, dentro desses pensamentos e segue a sinuosidade dos instantes. É adepta da cerimonia do pensar. Busca no mais profundo de si, respostas a perguntas mudas.
Tem a alma alvoroçada pelas notícias que vai escutando, enquanto cuida do seu trabalho. Seu coração em rebuliço salta, feito um grito que se solta, se cala e esmaece na garganta. É tão fácil amar e ser feliz! Porque será que tantos não conseguem? O mundo chora sangue pela insignificância das coisas. Uma interação silenciosa dela é firmada agora, na simbiose da cumplicidade com os seus tantos outros “eus”. Alcança o paroxismo da sua própria interioridade. Eleva-se a etéreas dimensões do nada. Paradoxo de si própria? Quem sabe...
Os sopros das reminiscências soam alto. Sente-se completa na liturgia do tempo, e esse, olha-a com o olhar inquisidor. Assim ela o sente. Esse seu diálogo íntimo mostra-lhe todas as caras do mundo ao seu derredor. Prevalecem, para fortalecer lhe, os seus melhores sentimentos. Escuta o cantar do vento nos talos que vão ficando nus anunciando o outono, que faz amarelar as folhas derrubando-as, para assim, vestirem o chão de terra do seu quintal. Neste tapete tecido pela natureza ela devaneia, enquanto sob seus pés o derradeiro suspiro de vida vira pó.
A sua memória persevera em ações. Atiça a sua consciência, que sorri tranquila ouvindo o gorjear dos pássaros que batem as asas rumo ao infinito. Reclama espaços num mundo prenhe de renovações. E ela se renova e se veste de mulher corajosa. Para trás deixou um punhado de coisas. Um monte de gente... Quiçá, se lembrem de mim!- Pensa ela continuando os seus afazeres.
Arruma a mesa com carinho. O fogo está vivo cozendo a refeição. O cheiro espalha-se pelo ar dizendo que ali habita a felicidade. Apaga a chama e o espera. Logo ele adentrará e lhe beijará como sempre faz, com carinho e olhos apaixonados. Ela envolverá o seu pescoço com os meus braços e se entregará às doces carícias dos amantes. Não quer hiatos a sustar o desejo.
Seus olhares encontram-se e falam todas as palavras que não ousam. Logo a noite se faz silêncio. Escuta apenas a quietude da lua e os seus suspiros harmoniosos. Seus olhos retêm faíscas capazes de alumiar noites e dias. Cabe a eles velarem pelos sentimentos e alimentarem a fonte dos desejos, e esses são tantos...
Seus braços adornam o seu corpo cansado. Adormece. Mergulha na ausência das coisas. É tão pequena e tão gigante ao mesmo tempo. Dilacera as amarras que tanto a sufocaram. É livre, como o pássaro que alça o seu voo mais alto, sabendo que o ninho existe e o espera retornar. Acorda com a sensação de que, com pouco se é possível reinventar a vida. Relembra Fernando Pessoa: “Quando olho para mim não me percebo./ Tenho tanto a mania de sentir/ Que me extravio ás vezes ao sair/ Das próprias sensações que eu recebo”.
Criam assim, os dois, o maravilhoso livro dos dias, onde a história da vida, esta vida de amor, se perpetua a cada amanhecer...
Lígia Beltrão