O último natal de uma década
As aulas terminaram no mês de novembro. No dia vinte e nove, foi a última prova do quarto bimestre e, no dia trinta, a festa de despedida de mais um ano letivo com direito a amigo secreto. Nada que eu não tivesse vivenciado nos anos anteriores.
Em menos de um mês, viria a noite de comemoração na casa do meu avô materno e, no dia seguinte, o almoço na casa do meu avô paterno. A primeira, ao lado dos tios e primos próximos e, a segunda, junto aos parentes que só via uma vez por ano.
A expectativa para o décimo quarto natal de minha vida não era mais a mesma. Seis anos antes, este período era bem mais saboroso. Afinal, eu não era mais ingênuo e, há tempos, sabia que Papai Noel não existia.
Contudo, no dia vinte quatro do mês derradeiro, participei de mais um ritual pós-solstício de verão em família. Antecipadamente, lá pelas dez horas da noite – porque as crianças não aguentavam mais de sono – vi um dos meus tios disfarçado de velhinho com roupas vermelhas chegar balançando o sininho e gritando, pausadamente, a quarta vogal de nosso alfabeto.
Para mim, o costume servia-me, unicamente, para marcar a cadência que me ajudava a localizar-me na harmonia do mundo, fazendo contrapeso com o meu isolamento quase autista, mas para a minha mãe a data era de suma importância.
Tanto brilhavam os olhos dela que eu não tinha coragem de subtrair, de antemão, o pacote comprido e achatado – que eu sabia ser o meu skate – do saco de presentes. Notava-se aí a inversão de papéis: cabia ao filho fingir para agradar a mãe.
Meu ânimo era bem fraco. Acho que em virtude do que ocorrera um ano antes: os meus primos furaram o meu Pogobol, depois de brincarem com ele no asfalto, mesmo eu dizendo que não podia. O que adiantou tê-lo degustado com os olhos durante os três meses antecessores, nos comercias do Bozo?
Apesar da pouca idade, o saudosismo já tomava conta do meu coração. No ano de 1989, sentia falta do longínquo 1983, quando ganhei um gravador. Aquele, sim, havia sido dado pelo Papai Noel de verdade. E eu passei o dia vinte e cinco inteirinho gravando programas numa fita cassete. Depoimentos e entrevistas nas quais revelei o que eu seria quando crescesse.
Senti-me num refluxo, então. Ainda que não tivesse este diagnóstico claro. Enquanto no ano em que eu contava quase a metade da idade que tinha no finalzinho da década eu registrava os meus sonhos em áudio, naquele instantte era hora de tentar entrar no grupinho dos normais. Embora não tivesse lá muito interesse pelo esporte californiano, eu deveria aprendê-lo para ser igual aos outros meninos. E o que fora gravado, seis anos antes, ficou relegado para outros momentos quaisquer do futuro, quando eu cansasse de tentar ser os outros e voltasse a buscar a minha essência.
E, de 1989 até aqui, muitos "papais noéis" visitaram-me. Nem sempre fui destemido e tive a bravura de pedir o que a minha alma clamava. Assim como os ciclos de doze meses repetem-se perpetuamente, alternam-se também as baterias sequenciais de audácia e covardia.
O Pogobol de 1988 nunca mais fora reposto e o skate de 1989 eu mal aprendera a usar. Ele apenas serviu para descer algumas ladeiras, sem que as manobras específicas daquele entretenimento fossem por certo aprendidas. Rapidamente esquecido, fora depositado no fundo do porão.
O gravador de 1983 durou bem mais. Nele, registrei os meus sonhos, contei piadas e cantei músicas que compus. A despeito das fitas terem sido perdidas e do aparelho ter-se depreciado com o castigo imposto pelo tempo, ele foi o meu companheiro de devaneios pelo prazo que lhe coube.
Agora, aproximando-me do meu quadragésimo natal, se eu não tomar as devidas precauções, pedirei outro skate, pois nem sempre é fácil convencer a mim próprio que o que existe somente no meu interior e não encontra par no plano externo é aquilo que me faz feliz de fato.
Antes que eu seja tentado a buscar uma vaga numa turminha qualquer, deixarei, aqui, manifesto:
– Papai Noel, eu quero um gravador.
Marcelo Garbine - @marcelogarbine - https://marcelogarbine.com.br/