O VELHO, A MOÇA E O BAR
JAX
A moça de sorriso farto e cabelos de tom castanho-alourado, ligeiramente ondulados, chegou desacompanhada ao bar aquela noite. Decidira, à última hora, dar uma passada ali, sem combinar previamente com algum de seus muitos amigos, igualmente frequentadores do local. Sentira aquela vontade súbita de tomar um drinque, ouvir música ambiente e encontrar alguém, conhecido ou não. Nem seria, aliás, a primeira vez que o fazia. Suficientemente bonita ou atrativa, estava sempre segura de vir a passar mais uma noite agradável de boêmia.
Ao entrar no bar, saudou um ou outro garçom e correu os olhos pelo local, para ver se algum de seus amigos estaria ali. Havia pouca gente nessa noite, e ela logo se certificou da ausência de qualquer integrante da sua turma. Identificou rostos que já havia visto antes, como o do esquálido cidadão que costumava postar-se próximo do piano, quando tocava Rafael, o pianista habitual, e aquela senhora de cabelos ruivos, cujos óculos de armação encorpada lhe davam certo ar de intelectual da noite.
Resolveu ir direto ao balcão do bar, sentar-se ao lado de um senhor de meia idade que ali se encontrava sozinho. Apesar do curto tempo em que observara o ambiente, a moça percebera que o tal senhor guardava postura serena e pensativa a um só tempo, alternando seu olhar do drinque que tomava para o espelho diante de si. De resto, seu jeito algo charmoso parecia credenciá-lo para uma conversação aprazível.
Ao acomodar-se no assento, a jovem dirigiu a seu vizinho um “boa noite” suave, emoldurado pelo sorriso moderado de quem deseja apenas pretextar educação ao encontrar alguém pela primeira vez. O “velho” (vendo-o mais de perto, ela considerou que ele já poderia estar na casa dos sessenta) respondeu de modo igualmente suave e educado, mirando-a com candura e cordialidade, a confirmar a expectativa da moça de que viria a constituir agradável companhia naquela noite.
A conversação inicial manteve, de parte a parte, o cuidado de mostrar-se gentil sem insinuar intenções outras que as do mero conhecimento mútuo. Ela comentou não se lembrar de havê-lo visto antes no bar, ao que ele polidamente esclareceu ser aquela somente a terceira vez que vinha. Acrescentou que, embora já residisse na vizinhança há quase quatro anos, não cultivava o hábito de sair à noite. Tendia mais a sair de dia e ficar em casa, de noite, dedicado à leitura ou à música. Coincidentemente com a idade que ela supunha que ele teria, o cidadão caseiro gostava de autores mais “tradicionais”, como Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Machado de Assis, entre os escritores brasileiros, e Albert Camus, entre os estrangeiros. Seu gosto musical compreendia tanto a música clássica, especialmente obras de Mozart e de Grieg, quanto canções populares brasileiras de Noel Rosa, Pixinguinha, Jobim e Chico Buarque. Para sua evidente satisfação, a jovem também conhecia boa parte das obras a que ele se referia, o que ensejou fluido intercâmbio de comentários em torno dessa “agenda” cultural.
À medida que a conversação avançava, a moça deixou escapar um pouco mais da sua curiosidade, ao voltar ao tema da presença do senhor no bar naquela noite. Perguntou-lhe se vinha sempre só. Ele respondeu com naturalidade que, na verdade, ali estava a esperar pela esposa. Mesmo acreditando na espontaneidade e insuspeição dos encontros ocasionais, como aquele, a jovem refletiu que talvez não valesse a pena arriscar-se à chegada da mulher de seu interlocutor. Afinal de contas, vá saber o que pode passar pela cabeça de outrem ao encontrar o cônjuge em conversa com alguém desconhecido. Por prudência, e aproveitando o fato de que acabara de entrar no bar uma velha amiga, a moça desculpou-se com seu interlocutor e deixou-o novamente só.
Cerca de uma hora depois, enquanto ela e a amiga passavam de um drinque a outro, em animado bate-papo, a jovem se deu conta de que o senhor continuava onde estava e solitário. Lamentou consigo mesma o pouco caso da mulher com o marido, ao atrasar-se tanto para vir ao seu encontro. Outra hora passou-se, mais uns amigos apareceram e ajudaram a estender o prazer daquela noite. Numa das ocasiões em que, casualmente, olhou para o balcão do bar, constatou que o velho se retirara. Ao sair com seus amigos, a moça não resistiu à curiosidade e perguntou ao barman se a esposa do homem tinha chegado afinal. A resposta foi surpreendente: o barman explicou que o cliente era viúvo, mas sempre dizia que aguardava a esposa. Em tom sarcástico, acrescentou que o vira agir, da vez passada, como se ela estivesse a seu lado.
A jovem continuou a frequentar o bar, só ou – no mais das vezes – na companhia dos amigos. Em algumas ocasiões, voltou a ver o viúvo solitário, sempre no mesmo lugar, defronte ao balcão e ao espelho que intermitentemente mirava (será que enxergava, ali, o reflexo da falecida esposa?). A moça ficou com a impressão de que o senhor parecia mais velho cada vez que o via. Sentiu compaixão por aquele homem que vivia a esperar sua cara metade, como se ela ainda fosse viva. Apesar desse sentimento, bem assim da sincera dor que passou sempre a experimentar quando vinha ao bar, ela jamais conseguiu reaproximar-se do velho, fosse para verificar se poderia ajudá-lo (o que considerava improvável, na verdade), fosse apenas para retomar a conversa sobre obras literárias e musicais. A vontade de procurar atenuar a solidão daquele senhor contrapunha-se ao temor de que ele pudesse revelar algum desvio mental mais sério, capaz de colocar risco à segurança da moça. Essa ambivalência perturbou o prazer de suas vindas àquele bar de tal modo que finalmente decidiu não mais o frequentar, inventando desculpa que seus amigos engoliram com a mesma facilidade com que todos continuaram a engolir seus drinques de descontraída felicidade em diversos outros pontos de encontro. Sem a presença incômoda da dor de uma solidão interminável. Sem a dor ainda maior que causa a sensação de impotência ante o sofrimento humano.
In Ibitinema e Outras Histórias (2016), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP