Jurema nasceu em Santo Onofre, pequena cidade do interior brasileiro. Viveu uma infância típica de outras crianças nessas condições. Brincou de boneca, fez tortas e bolos de lama, caçou tanajuras, pulou amarelinha, estudou um tempo na escola local, assistiu aos teatros de marionetes nas quermesses, correu dos palhaços e comportou-se, enfim, conforme o padrão local. Melhor dizendo, foi assim até certo ponto. Talvez nem se percebesse na ocasião, mas Jurema se distinguia das demais crianças em boa medida. Era mais inquieta em seu íntimo, mais ansiosa, como que estivesse permanentemente em busca de algo fora do alcance ou da percepção de seus pares.
Quando fazia as tortas de lama, não costumava resignar-se à mesmice de encher as latas com lama, para depois desenformar. Queria explorar outras possibilidades, de forma, de tamanho, do que lhe vinha à cabeça. Às vezes, o resultado não saía como queria, ficava aborrecida (ainda mais quando as outras “doceiras” dela debochavam), mas não esmorecia.
Do mesmo modo, quando caçava tanajuras, não capturava qualquer uma. Preferia as maiores, de traseiro mais volumoso. Sem o saber então, tratava de ser seletiva, palavra possivelmente difícil de entender para uma menina de sua idade. Desprezava as formigonas menos avantajadas que apareciam em grande quantidade e eram recolhidas aos montões por seus amiguinhos. Jurema buscava, ansiosa, as tanajuras mais dignas desse nome para levar prá casa. Sua mãe tinha de contentar-se com um número menor dessas iguarias, que fritava para toda a família e as quais, a bem da verdade, satisfaziam o apetite, graças a seu tamanho.
Não demorou muito para que Jurema sentisse aumentar sua inquietação em Santo Onofre. A televisão ensinou-lhe que havia muito mais para fazer e acontecer do que lhe oferecia sua pequenina cidade. Logo se viu insatisfeita com a escola, com o rol limitado de diversões e com a falta de graça de seus amigos. Por sorte sua, a família veio a mudar-se para outra localidade, de porte médio, no belo estado do Rio de Janeiro, onde o pai encontrara novo emprego. A cidade dispunha de salas de cinema, embora modestas, a exemplo do teatro municipal e das poucas casas que serviam de sede a uma ou outra exposição ocasional. O grupo escolar que a menina passou a frequentar era bem maior do que a escolinha de Santo Onofre e também apresentava uma fauna estudantil mais variada, retrato lógico das massas trabalhadoras e categorias sociais que ali habitavam.
Em pouco tempo, contudo, ao sabor da passagem da infância à adolescência, Jurema experimentou crescente desassossego. Já não se contentava com as conversas mantidas com os colegas da escola ou da rua onde morava. Aborreciam-lhe as sessões de cinema, a monotonia da vida local e a constante falta do que fazer nos intermináveis fins-de-semana. Sua família não deixou de perceber a mudança no comportamento de Jurema e a sentir relativa preocupação, ora quando a via ensimesmada, em atitude de muda insatisfação, ora quando a escutava contestar as opiniões da mãe, do pai ou de quem mais houvesse. Pior ainda era ouvir seus incontroláveis muxoxos e suspiros, atiçados pelos sermões do pároco ou pelos discursos da diretora da escola e de outras eminências locais. A mãe, de natureza pacata e conservadora, refugiava-se na esperança de que o aparente perfil contestatário da filha nada mais fosse que a fase temporária de adolescente.
O pai, mais voltado para as necessidades práticas e financeiras da vida, acabou premiado por nova oportunidade profissional que o levou desta vez para uma grande metrópole. Rumou, com a família a tiracolo, para a Cidade Maravilhosa do Rio de Janeiro. Partiu, incensado pelas felicitações e manifesta admiração de vizinhos e companheiros de trabalho, alguns dos quais mal disfarçavam certa inveja por tamanha sorte.
Naqueles longínquos anos sessenta, o Rio fulgurava no firmamento brasileiro por sua magia, cultural, esportiva e de toda ordem, embora houvesse sido institucionalmente despojado da condição de capital do País. Constituído em cidade-estado de múltiplas belezas, naturais e humanas, parecia o paraíso sob medida para a realização pessoal de Jurema. Ali, a menina veio a prosseguir os estudos, a formar-se pela UFRJ e a ter a primeira experiência profissional. Seu cotidiano fervia de atividades. Jurema acordava cedo e dormia tarde, envolta em reuniões, compromissos, encontros e desencontros. Conheceu gente sem fim, trocou de namorado inúmeras vezes (nem mesmo ela era capaz de contabilizar todos) e parecia haver riscado a palavra tédio do seu dicionário.
Como dizem os franceses, “hélas”! No íntimo do seu coração e da sua mente, Jurema continuava desassossegada e insatisfeita. O convívio com um crescente grupo de amigos e a permanente troca de amores refletiam seu caráter irrequieto, mais do que sua evidente capacidade de comunicação. Alguns amigos, simplórios, aventavam que a jovem deveria mudar de emprego ou buscar outra formação. Ela minimizava tais avaliações. Seu trabalho constituía a menor de suas ansiedades. Exercia bem suas funções e, graças a isso, em pouco tempo foi escolhida para estagiar na sede da companhia, em Paris. Cumpriu, eficientemente, o estágio e acabou convidada a permanecer na Cidade Luz, onde aproveitou para fazer pós-graduação.
Passou largo período na França e na Europa, trabalhando temporariamente em outros escritórios da companhia e participando de variadas atividades, profissionais e acadêmicas. Conheceu Roma, Londres, Berlim, Atenas e outros centros célebres. Fez curso de especialização em Nova York, o que lhe permitiu forte imersão na cultura norte-americana. Com o tato reforçado pela vivência internacional, comentava preferir os padrões europeus ao da terra do Tio Sam de tal modo que nunca ofendeu eventuais interlocutores ianques.
Durante esse tempo, Jurema casou-se (mais de uma vez) e teve filhos, a quem soube criar e dedicar-se, sem prejudicar sua atividade na firma e nos estudos. Aprendeu e viveu muito. Jamais se livrou, porém, da inquietação que teimava em persegui-la. Fosse nas rodas de debate artístico-literário nos aprazíveis cafés parisienses, fosse em meio a deliciosas degustações em alguma trattoria romana, Jurema transpirava impaciência e nítido desconforto, como se nenhuma análise, nem qualquer filosofia, ocidental ou oriental, pudesse alterar seu estado de espírito.
Perto de aposentar-se, pensando nos pais muito idosos, e embalada por um dos filhos que decidiu vir para o Brasil, Jurema regressou à terrinha e ao escritório da empresa onde começara. O Rio mudara muito, ganhara em violência urbana e perdera boa parte da mágica descontração do seu passado. Não foi fácil readaptar-se, mas a experiência adquirida ao longo da fase adulta ajudou certamente.
Anos depois da aposentadoria, passando uns dias na linda e paradisíaca cidade de Arraial do cabo, no Norte fluminense, Jurema sentiu certa quietude, mesmo se momentânea. E isso apesar da irritação que lhe causavam as atribulações cariocas e brasileiras naquela triste fase nos anos 2000. O País havia perdido nova oportunidade proporcionada por uma conjuntura econômica favorável no plano mundial e debatia-se em crise, agravada pela falta de diálogo político. Ao pensar nisso, Jurema exalou mais um dos seus costumeiros muxoxos.
Prevaleceu em seu íntimo, contudo, a relativa paz finalmente experimentada por quem se angustiara toda uma existência. Não sabia definir se era fruto do cansaço ou da tolerância que a idade avançada pode trazer. Jurema cerrou os olhos por breve instante para melhor desfrutar daquela paz, ampliada pelo leve marulhar das ondas naquela praia. Chegou até a lembrar-se da placidez (ou da pasmaceira) de sua infância em Santo Onofre. Não sentiu qualquer nostalgia, no entanto. Jurema se fizera bem escolada. A paz, quando encontrada, não tem a ver com o tamanho, nem com as condições da cidade de residência. Depende da gente. Pode estar em uma pequena cidade do interior... de si mesma.
In “Ibitinema e Outras Histórias”
Ed. Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP, 2016.