Que Brote a Primavera
Fui dar um passeio aos arredores do sítio (lugar) onde moro. As árvores, esqueletos nus que requebram com a música da ventania que corta as serras despidas de verde, esgalham-se se partindo de dores recentes, enquanto o vento geme sem saber para onde ir, alvoroçado todo, estapeando o nada.
Os esqueletos das casas queimadas, ainda parecem ter o cheiro do monstro faminto, que há alguns meses soltou fogo pelas ventas, sem nenhuma dó dos que teimam em habitarem o lugar que lhes viu nascerem e crescerem, a catarem azeitonas e transformarem-nas no azeite, colherem as uvas nas vindimas e fabricarem o vinho para lhes alegrar a vida cansada da lida e do trabalho bruto pela sobrevivência diária. Hoje, parece que o tempo parou, com preguiça de espichar o pescoço para ver a terra coberta de cinza e os tocos ardidos mostrarem que a história dos costumes e tradições, já passou por ali.
Olho as serras nuas. Despidas das suas vestes verdes, que cintilavam esvoaçantes à luz do sol, que cobrindo os dias de dourado fazia promessas de fartura e exuberância, por todos os lados. Cenário de horror, o que se descortina diante dos meus olhos, ainda incrédulos.
Eis que no meio de tantos gemidos da terra sofrida, ouço o riso espontâneo do regato, que corre maravilhado no seu caminho pedregoso e já quase esquecido. Molhado da chuva que recentemente caíra dos céus, ele lambe as feridas da terra queimada, querendo curar o seu sofrimento. Assim despenca por entre as pedras para desmaiar no seu leito há tanto abandonado.
Aqui e acolá descubro que o chão se transforma em tufos amarelos, lilases, brancos... E vejo embevecida, a relva colorindo-se de flores miúdas e sem perfume, mas que me mostram que a vida está a renovar-se e que a natureza tenta refazer-se da sua dor recente. Olho agora extasiada, os campos vestindo-se para a estação que chega, ainda sob as lágrimas do inverno, que se demorou mais que o esperado, e agora tarda a ir-se embora, certamente para admirar a beleza a se estender pelos campos, tais quais lençóis a quararem, para limparem as enormes manchas cinzentas que a tudo entristece.
À noite, o vento canta feliz despedindo-se do dia e chamando as estrelas para voltarem a brilhar. A lua, insinuante se mostra mudando de forma, ora enchendo a cara redonda de luz ora se quebrando manhosa, a espera dos beijos do sol para se exibir para todos os astros, e encantar a terra abobada de vida fazendo renascer a esperança nos homens, já cansados da luta, e descrentes de quase tudo. Tudo brilha mesmo na escuridão das noites ainda frias.
As muitas mãos calejadas erguem-se aos céus dando graças por esse seu chorar inesperado e molham-se com as lágrimas que caem copiosamente do rosto azul do firmamento, agradecidos pela dádiva. É a emoção do recomeço, do refazer, do renascer.
Bendito seja Aquele que tem o poder de transformar o urro impiedoso da agonia, na suave brisa do renascer! Bendita seja a chuva tardia que encharca de gozo o chão seco e quase estéril, cobrindo de verde os pastos quase mortos, fazendo a terra emprenhar de novos brotos. Devagar, vai se cumprindo o ciclo das estações do ano. Está chegando finalmente a tão esperada estação colorida. Há um perfume de flores no ar e risos escancarados dos deuses que dançam em festa a comemorar a vida parindo outras vidas. Finalmente. Volto sorridente e feliz à minha morada. Ao aconchego do amor. Ela está chegando vestida em roupa de festa, cheia de brilhos e prometendo ser das mais belas já nascidas no lugar. Alegremente bate à porta... É Primavera!
Lígia Beltrão