Quem Sou Eu?
Saberei dizer quem sou eu se perguntarem-me? Resposta difícil essa. Vivo os meus dias construindo-me, remendando os retalhos dos quais sou feita e que se não cuidar se esgarçam aqui e acolá, pela fragilidade da vida. Essa vida que trago latejante nas veias, fragmentada em múltiplos pedaços. Sou indagações. Tempestades e calmarias. Pedaço desfeito de alguma saudade, nem sei de quê, mas que teima em me torturar. De algum sonho que ainda, teimosamente, atrevo-me a sonhar.
Quisera ter as respostas prontas, para o enigma de mim mesma, mas é impossível. Sou ambígua. Vivo construindo-me para existir por inteiro. Um dia, lá bem distante, imaginei-me poeta – os poetas tornam-se eternos -, a palavra vive para sempre. Tudo o mais é passageiro e findo. Eu queria gritar ao mundo o que corria dentro de mim e corroía a minha alma, reduto de tantas coisas guardadas. Assim, vivo aprendendo a arte de inventar frases. Desnudo-me.
As emoções explodem e extrapolam o meu eu indagador. Faço-me, por vezes, jogo de incoerências, mas só eu sei onde sangra cada fragmento, dessa minha desconexão liberta e atrevida, escondida dentro de mim há tanto tempo, e aflorada agora, em minúsculas letras, que vou juntando e costurando em palavras, que me levam de repente à salvação dos meus anseios. Recôndito dos meus desejos. Sou pedaços de uma colcha de retalhos unidas ponto por ponto, num desenho imperceptível de mim, pronta para cumprir seu destino.
Batem à minha porta do coração, e ao abri-la, a terrível constatação de que a morte, fria, cruel e horripilante, existe e vive a nos espreitar a vida sem piedade. Faz-se presença quando pensamos ser eternos e acreditamos na construção dos dias e da vida. Faz-nos surpresa para não termos tempo de pedir clemência. Ignora a dor dos que recebem a sua visita indesejável e ingrata, e ri impiedosa, da nossa fragilidade diante do óbvio. Lição de vida? Quem dera pudéssemos entender os desígnios que veem do alto...
Equilibro-me na rede esgarçada da vida e vejo o lume do fio da navalha a cortar os fios de aço dos dias. Sou por vezes, a incoerência do que julgo correto, porque sou incapaz de suportar sem sofrimento, o halo da agressão e da falta de sentimentos. Mesmo sabendo da sinuosidade dos caminhos não me desvencilho dos perigosos despenhadeiros e sigo em frente, achando que sou mais forte que o tufão devastador, por ter a grandeza de pensar saber reconstruir-me. Ainda que só eu ache isso.
Clarice Lispector disse que “ama mais o que quer do que a si mesma”, e eu, numa obstinada verdade de mim, digo, que amo mais aos outros do que a mim mesma. Imperdoável transgressão às leis do viver? Peço perdão agora a mim e ao meu coração tão cheio, de repente, de mágoas. Por culpa do meu próprio amor esqueci-me de mim e morri um pouco a cada dia, mergulhada no meu próprio intimismo.
Careço da misericórdia de ser eu mesma. Sou simplesmente pedaço de carne que vira pó no passar do tempo e que, se viver sem amor, nada terá valido a pena, e tudo perecerá, e só uma tênue lembrança soprará até apagar-se no esquecimento. Enquanto as estrelas continuarão a brilhar e o sol nascerá, outra vez, anunciando a vida que continua...
E assim eu sou, e vou sendo, na ação da existência dos dias. Numa paz toda minha.
Lígia Beltrão