REMINI-CIÊNCIA
JAX
Segundo o dito popular, recordar é viver. Há que saber recordar, no entanto. Assim como viver requer muita ciência, recordar exige grande dose de conhecimento, reflexão, autocrítica e capacidade de avaliação. Não basta a simples boa memória, não senhor! As lembranças devem ser trabalhadas, sopesadas, analisadas, projetadas em todo seu significado e em seus efeitos, de modo a adquirir pleno valor.
Pouco importa do que se trate. Pode ser uma viagem, algum amor perdido, a primeira paixão, uma oferta de emprego, as incontáveis horas gastas no transporte público, aquela prova de surpresa na escola, a despedida de alguém, o dedo preso na porta, uma jogada celestial de futebol, a primeiríssima viagem a Arraial do Cabo, aquela dolorosa injeção no rabo, a reunião que decidiu o aumento do condomínio, o enterro do bisavô, a chegada daquela prima tesuda, a última sessão de cinema no Metro-Tijuca, o primeiro automóvel, o melhor baile de Carnaval da vida, a surra injusta e até mesmo a lembrança que teima em não vir. São muitas as situações que qualquer um pode ter vivido e vai querer recordar em determinado momento.
Quando se recorda de uma amizade, por exemplo, é natural que se reconstituam os traços físicos da pessoa, especialmente os mais característicos, tais como os lindos olhos de certa garota, o nariz pronunciado de algum velho amigo ou o ar de austeridade que os óculos ou a testa ligeiramente franzida emprestavam ao tipo lembrado. Qualquer um dos traços evocados necessita, todavia, de esforço complementar de reflexão para delinear-se o caráter do personagem ou a impressão que de fato causava ao recordador. Os olhos da menina podiam ser lindos, mas vazios de expressão ou, pior ainda, cheios de si mesma. Em uma ou outra circunstância, a recordação perde sua atratividade e até tenderia a ser logo descartada, salvo se tiver havido uma tentativa de superar o olhar vazio ou a soberba da garota mediante a conversa providencial, capaz de revelar o verdadeiro eu da criatura.
O mesmo se pode dizer da suposta austeridade do personagem recordado. Por trás do rosto sisudo, pode existir alguém...ainda mais sisudo! Por outro lado, pode haver um tipo boa-praça, com quem se veio a estabelecer agradável conversação e relacionamento amigável. A recordação, para ser completa e servir ao propósito do ato de lembrar-se, deve ser “trabalhada” com cuidado, compondo-se de comentários elucidativos acerca do tipo em questão, da situação lembrada e dos possíveis resultados que daí decorreram (na época atual, tão influenciada pelos modismos empresariais, não se podem perder de vista os resultados).
Não existe intenção aqui, no entanto, de defender-se enfoque estritamente psicológico no exercício de recordar. Nem psicológico, nem sociológico, nem qualquer outro “lógico”, na verdade. De lógica chega a própria lógica, com toda a falta de lógica que a vida real lhe acaba conferindo.
A memória exige um pouco de ficção! E a vida pede, quase suplica, imaginação. A boa recordação requer certa dose de magia. Não se trata de adulterar a realidade, mas de expandi-la, explorar e interpretar suas possíveis “nuances”, para dar-lhe maior conteúdo, força e cor. Voltando aos olhos lindos, vazios de expressão, cabe recordar a razão de assim serem. Caso essa razão fosse completamente ignorada na ocasião, então compete ao recordador interpretar, de sua perspectiva atual, o que poderia significar aquele olhar perdido. Insatisfação com o ambiente familiar? Desilusão com a vida? Tentativa de dissimular uma paixão? São múltiplas, talvez, as hipóteses, e cabe a quem recorda eleger a melhor rota para contar suas lembranças. A vida assemelha-se a um conto cujo desenrolar e cujo desfecho variam conforme a perspectiva de quem cuida de narrá-la.
Em síntese, o processo de recordar exige evoluir do conhecimento empírico para o científico. Não bastam as puras reminiscências, escavadas da memória. A boa recordação depende do trabalho árduo e meticuloso da “remini-ciência”.
in Traços e Troças (2015), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP