Reminiscências de um sonho de amor
Vejo-me de repente a espiar o tempo. Sou memórias submergidas das águas das lembranças, mesmo as mais distantes. Ao derredor, tudo é silêncio. Capto os sons, mesmo os mínimos, como uma afronta ao meu estado de rebuscamento das horas. Tenho visões deslumbrantes de coisas tantas, adormecidas num lugarzinho escuro de algum eu, que deixei num ponto qualquer de mim mesma. Agora sou retrocesso. Volto a um tempo em que a brisa soturna do mar acariciava meus cabelos e lambia atrevidamente o meu rosto sorridente. Vi-me banhada em alvacentas brumas, com um vento suave de entardeceres apaixonados, onde eu voltava a ser a menina embalada pelos sonhos da felicidade, que se descortinava então. A vida pulsava, ainda que medrosa, nas promessas enamoradas do tempo. Eu era alumbramento, sentimento entranhado. A felicidade se anunciava!
De olhos fechados, vejo diante de mim, todas as caminhadas que fiz em busca dos sonhos, que de quando em vez, dormitavam, no silêncio das horas. Sinto-os emergirem agora, acumulados e perenes. Encanta-me olhar o mar. Mesmo que nas lembranças. Espreitar aquele rebuliço, por vezes rebelde e tão senhor de si. As piruetas que dá, contorcendo-se em ondas, para arremessar-se inteiro, sobre a areia, num ato despudorado de amor.
Quantas vezes deixei-o lamber-me os pés cansados, sentindo-me revigorada para continuar as andanças da vida. Memória imperecível do que nos faz felizes. Continuava escavando meus sentimentos, no mais profundo das minhas recordações. Não havia testemunha maior do meu sentimento, do meu amor. Era como a força daquelas águas inquietas que se renovavam a cada carícia atrevida, como açoite dos ventos, como cantiga enamorada.
Cada instante revela uma nova reflexão do que vivi, iludida pelo coração assediado. Fui feliz, enquanto pude sonhar. Indago inconscientemente dos mistérios que me cercam as horas indecifráveis, das agonias do adeus. Me visto de circunstâncias, para dar uma resposta às minhas perguntas mudas, tudo me induz a um pensar mais profundo. Observo-me pelo avesso. Tomo um susto ao dar-me conta que os meus sentimentos declinam e lentamente se esvaem por entre os meus dedos, na impossibilidade de segurá-los indefinidamente.
Continuo sem respostas. O amor não acabara, mas o desejo de amar sim. Difícil entender. É muito mais fácil entender o mar e seus mistérios. Ao menos, ele não tem medo de chegar-se, de ser espontâneo, de ser inteiro. Criara o meu universo e de repente ele não mais existia. As lembranças cobram-me o máximo e eu me transformo num suspiro de um dos meus ais guardados, do adeus ao amor. Não ao meu amor, porque este é meu e ninguém o rouba. Ele é a constatação da grandeza da vida que pulsa em meu ser. Abro os olhos, não sou mais um espectro de mim mesma. Já é tarde. Não suporto a previsão das coisas findas, mas aqueles momentos, agora, são só uns sussurros nos ouvidos da noite...
Lígia Beltrão