Ressurreta
Quintanista de medicina. Tudo ia bem, quando recebi a estranha proposta para residir num hospital público. Estagiaria numa ala que muitos colegas recusaram. O lugar era chefiado por uma doutora chamada Carmem Rosita. Preferia que a chamássemos pelo segundo nome, sem o doutora. Sessenta e cinco anos, rosto arredondado, séria, pequena, delicada, mas enérgica, de cabelos grisalhos e olhar misterioso.
Quis descobrir o que havia de tão intrigante naquele lugar. Alguns diziam que era o necrotério. Mas colegas disseram que não. Era uma ala de salvamento. Podia-se considerar sobrenatural as coisas que aconteciam lá. Pensei em declinar da proposta, mas pensei encarar aquilo como um desafio profissional, principalmente quando soube que as enfermeiras tinham profundo respeito por Rosita. Não só pelas orações que ela fazia numa língua estranha, mas também, por ser chamada sempre quando alguém ia a óbito. Um colega contou-me um desses casos: Uma garota fora levada à ala duas horas depois da morte cerebral ser declarada. Rosita enxotou os funcionários e estagiários do lugar. Alegava ter de agir rápido e que precisava ficar a sós com o cadáver. Para que tanta urgência se não havia mais nada a fazer? Duas horas mais tarde, a garota já conversava e ria. Apesar de isso acontecer com certa frequência, era impossível conter o alvoroço no hospital. Só podia ser milagre. O sentimento de estranheza que os colegas médicos tinham por Rosita, converteu-se em respeito e assombro.
Era recomendação da diretoria que o assunto fosse investigado em detalhes. Mesmo tendo sido convocada a prestar esclarecimentos, e quase que forçada a apresentar dados para o embasamento científico daquela prática tão hermética, Rosita recusou-se a dar detalhes. E não se via obrigada a tal, pois, pelo tratado de Helsinki, tinha o direito de usar qualquer recurso, científico ou não, para ressuscitar alguém.
Imaginei como a minha carreira de médico deslancharia se fosse capaz de fazer mortos voltarem à vida. Tinha de aprender seu método. Aliás, tinha de ser logo. Rosita já não era tão jovem. Iria se aposentar.
Enfim, ao ser admitido, restava conseguir aproximar-me daquela mulher pra lá de misteriosa. Não foi fácil. Quando requisitada a ressuscitar um morto, não admitia a presença de ninguém na sala. Residentes achavam aquilo uma aberração. Alguns faziam piadas e outros juravam que Rosita era a encarnação do diabo. Os poucos que ainda se interessavam, perderam as esperanças de aprender a técnica. Contudo, eu era persistente. Demonstrei meu interesse granítico de aprender seus métodos. Até deixei-lhe a par das minhas intenções altruístas e religiosas. Mas ela não se impressionou. Até que, um dia, fitou-me diretamente nos olhos e disse: - Você realmente quer aprender meus métodos, não quer? – Meneei que sim: - Então, Guimarães, - disse ela – tenha coragem de esquecer tudo o que aprendeu até agora.