Retrato - por Ione Kadlec

RETRATO

 

Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.

 

Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

Eu não tinha este coração

que nem se mostra.

 

Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

— em que espelho ficou perdida

a minha face?

 

(Cecília Meireles)

 

NAS TERRAS DO MEU PAI

 

Nas terras do meu pai, sentia um profundo descontentamento. Não compreendia o mundo a girar, os dias a vagar, divagando com o sol a fervilhar, pois todos os dias eram iguais há todos os dias. A fé ardia no peito e o peito ardia em fé.  A rede balançando, os olhos na estrada e o sol quente nos galhos secos e ardentes.

Estrada rachada, cerca quebrada, mandacaru presente, terço cantado e santo carregado pelos braços daquela gente.

Lembro-me, ainda, de minha partida a buscar a tal felicidade; mãos frias, malas vazias, olhos cegos com o pó e a poeira da estrada. Lembro-me ainda, como me lembro! Pois amava um rosto acabrunhado, braços cruzados, pés a riscar o chão avermelhado, margeado por nada, além de ilusão naqueles olhos negros e cansados.  

Vendo-me fugir da sede, da fé, da obrigação e do não viver suspirou de forma profunda, acenando-me com as mãos calejadas, ásperas da enxada e a seca a castigar-lhe os cabelos acastanhados. Não sei se compreendeu que fugia, com o coração acelerado no carro veloz a correr, daquele meu desejo desenfreado de por minha vida debaixo de seu telhado.

Seu telhado: pau-a-pique. Sua cama? Uma rede. Sua vida, ser adulto sem nunca ter sido menino. Seus sonhos? Uma porção de terrinhas, vacas magrinhas, crianças agarradas a ele, chamando-o de pai. Labutar na terra, suando grossos pingos para ganhar o pão.   À noitinha enroscar-se na rede com a amada. Pequenos sonhos para quem a vida não era nada.    

Quisera eu ter ficado e juntos vivermos o pecar por ter amado. Ter tido filhos, uma porção de terrinhas habitadas por vaquinhas num solo de esperanças desatinadas. 

Hoje, ao olhar para trás, lembro-me por vezes, sem querer, querendo, como teria sido a face de nossos anjinhos, a andarem sempre com uma vela na mão, a velarem a santa mãe amargurada.   

Lembro-me, ainda, de sua voz baixa e mansa, olhar de criança, fingindo não querer me enxergar. A noite quente, o peito ofegante debaixo do imbuzeiro carregado, enquanto a lua, redonda e cheia, observava os amantes, acompanhadas das estrelas brilhando como diamantes. 

Recordo-me dos meus vestidos de chita, das fitas coloridas, nos pés sandálias de tiras para as festas do santo idolatrado. O lume da fogueira clareando o escuro lá de casa, onde fingíamos rezar, deitados na rede a balançar, empolgados por estarmos com o corpo tão colado. Ele a me beijar e eu a amá-lo. 

A fome, a sede e a fé desenfreada nos roubam o tempo de sonhar, o tempo de amar e o tempo de pecar. Ah! Queria ter pecado mais, amado mais, vivido mais ou simplesmente ter vivido ao som do gado chamado no berrante, ajeitando o manto e agradecendo com as preces e fé ao santo querido, senhor São José.

Olhando, atentamente, o mar das janelas do meu apartamento, vejo as ondas a debruçar-se sobre a areia do mar e esforço-me para ver a beleza das águas que dançam para o céu de verde esperança.  Quisera eu ter meus anos diminuídos e meus caminhos modificados para aproveitar com desejo e vontade os olhos negros daquele moço tão amado.

Os anos passaram. Minha mocidade se desfez como as fagulhas da fogueira lá de casa. Meu andar é lento, minha voz embargada, o peito morto para a fé, sustentado por um corpo infértil, suspirando em uma alma desbotada. 

As terras do meu pai não existem mais, nem o imbuzeiro carregado, nem as festas dos santos, nem as fitas no cabelo. Restaram-me as lembranças quentes do meu amado. Vejo, ainda, seus cabelos acastanhados, o sorriso de menino a sorrir-me constantemente em meu passado.

Com os olhos para baixo, vivo a riscar com meus pés outro chão. Daquele ficou a saudade, o pó e a poeira da estrada que cegaram para sempre os meus olhos que nunca viram a tal felicidade. ’

 

Página de nossa colunista Ione Kadlec

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