Rio Jauaperi
...diga aos meus amigos que mando um grande abraço e que me recinto de nossos agradáveis papos à luz da lua na margem da estrada, momentos em que murmurávamos com prudência, sibilando as palavras, nossos planos mais íntimos de aventuras iminentes. De quanta coragem dispúnhamos em nossos corações e mentes...
Até a próxima.
Post-scriptum: (PS)
Lembrei-me neste momento, que estou devendo para eles, o relato de minha entrada no Rio Jauaperi.
Para quem não acompanhou os antecedentes daquele anseio de garimpagem, preciso esclarecer alguns eventos, datas e lugares. Deu-se fé, no ainda Território de Roraima, extremo norte do país. O ano era 1980. Eu tinha 42 anos bem vividos. Trabalhava no posto avançado da Receita Federal em Pacaraima; uma serra com 1.400 m de altitude, lindando com a Venezuela.
Correu a notícia em todo o Território, do descobrimento de mais um garimpo de diamantes, subindo o Rio Jauaperi. Dizia-se estarem os garimpeiros, aqueles incansáveis homens, sendo agraciados por Deus com a sobeja entrega de bolsões da "pedra preciosa".
A volúpia da ambição material espargiu em meu coração as gotículas da curiosidade, da necessidade premente de conquistar a riqueza, Eram tantas as notícias otimistas de uma quantidade incontável de “diamantes" garimpados, que conseguia ver brilhando diante de meus olhos, aquelas pedrinhas preciosas. O tilintar da máquina registradora não me permitia uma noite de sono tranquilo. Logo a mim que não sabia nada de garimpagem ou de diamantes. A coceira da aventura não me largava. Tinha que ir lá conferir a confiabilidade das noticias.
Consegui 60 dias de férias. Corri para a cidade de Boa Vista, à procura de um garimpeiro tarimbado e descapitalizado. Era o que não faltava na Capital
Não digo que fizeram fila à minha frente, porque tive o cuidado de evitar alarde. Fiz uma busca sorrateira, silenciosa e com a cautela necessária para não despertar "corrida" como nos Bancos em estado falencial.
Misturei sonhos, desejos e uma realidade desconhecida para mim, e com este cadinho de emoções e cobiça, senti avolumando-se em meu cerne um medo patológico de um futuro que só dependia de uma decisão unilateral; minha decisão. Nunca estive acostumado com o fracasso antecipado. Simplesmente não aceitava, e não seria naquele momento que deixaria que acontecesse, apenas por estar envolvido em algo a que nunca havia nem sequer pensado fazer. A curiosidade foi maior que o medo.
Fui...
Fiz parceria com um cearense do oficio há mais de dez anos; um caboclo seco, forte como um granito, duro como o "si!ex," com a pele crestada pela intempérie causticante, inerente à sua atividade profissional. Homem de poucas palavras, porém, de muita ação, resoluto como o dia de hoje, contudo, sem a vida resolvida. Ele fez uma relação das necessidades básicas, para um período de 50 dias; antes tivemos que mandar fabricar uma "canoa" de tábuas sob a supervisão dele, com um banco rústico em cada extremidade, toda pregada e calafetada. Partimos para comprar os viveres: arroz, feijão, farinha, sal, charque, café, açúcar, copos e pratos de plástico; talheres grosseiros, facões, lona para armar a barraca e muita disposição. Jogamos tudo na carroceria de um caminhão e ganhamos a estrada, em direção à ponte que passava por cima do rio. O nosso o rio dos diamantes, o rio de nossa fortuna, o rio que havia guardado para nós uma bolsa cheia daquelas pedrinhas valiosas. O rio da nossa independência.
Partimos sorrindo, com a alma estufada de emoções, de vibrações em frequência de diapasão, o corpo sentindo o momento seguinte. Meus lábios queriam comemorar a vitória do achado antes mesmo de começarmos a faina. Digo com toda sinceridade que a paciência não é o meu forte. Se fosse atender aos meus anseios, já estaria embarcando naquele caminhão, de volta do garimpo, com o bisaco cheio de riqueza. Mas Deus não fez as coisas assim... Ele, sabiamente ensinou que há um tempo para tudo, para cada coisa, assim doa a quem doer. O tempo de Deus é diferente do tempo do homem. Na margem da estrada que liga Boa Vista a Pacaraima, desembarcamos os víveres, a canoa, e nossa vontade de vencer as dificuldades, o desconhecido. Uma vez colocada a canoa n'água, carregada com os alimentos e instrumentos, incluindo quatro bateias, iniciamos nossa jornada rio acima, sempre procurando margear o curso d'água para evitar a força da correnteza, que se concentra no leito do rio. Remando a poucos metros da margem, tínhamos a vantagem de contar com uma lâmina de água baixinha e perto da praia. Tínhamos receio de a canoa fazer agua por causa da má calefação feita às pressas.
Por volta das duas horas da tarde depois de remar por seis horas, com apenas algumas paradas rápidas para descanso, desembarcamos e providenciamos nosso almoço. Lavamos a carne no rio por alguns minutos, colocamos numa panela tosca e esperamos que o fogo fizesse o seu papel. Estávamos numa região extremamente selvagem: de um lado o rio, do outro, a mata fechada com tudo o que uma mata comporta. Percebemos vários rastros, pegadas e outros elementos que nos induzia a imaginar o que nos aguardavam à frente, em nossa peregrinação. Havia caminhos de formiga, pegadas de lagartixas, de tatus, bem como de tamanduás. Marcas dos pés de passarinhos que vinham à margem beber água e banhar-se. Centenas de borboletas colorindo o espaço ao nosso redor.
Meu companheiro quase não falava. Não sei se ele era prudente ou tímido, se tinha um vocabulário sumário ou se não confiava num branquelo sem experiência suficiente para uma missão tão arriscada.
Uma curiosidade: o segredo para eliminar o sal do charque, ele me ensinou: resumia-se a esfregar com bastante força, os dois lados da carne na areia molhada. Dava para comer sem sentir nenhum excesso do sal.
Nossa postura, o tempo todo, mesmo enquanto preparávamos a comida, era de ficar parados e de ouvidos em pé, para perceber qualquer barulho diferente. Carregávamos um bom armamento: dois facões, meu revolver "38"' e a espingarda dele: uma 12 de cano serrado, acompanhada por 50 cartuchos de chumbo grosso.
Íamos navegar em águas turbulentas rio acima. Carecia sermos precavidos.
Quando a noite apagava o sol, procurávamos o remanso para vogar o mais distanciado da margem possível. Jogávamos a fateixa e nos deitávamos com os corações mansos e adestrados para quaisquer surpresas. Como a região era naturalmente perigosa, tínhamos que ser cuidadosos.
"Dormida"? Eu na proa, por baixo da tábua que servia de banco para remar, ele na popa, também por baixo do banco. A guisa de travesseiro, eu usava um casaco grosso, velho e macio, bem dobrado, onde aconchegava minha cabeça para descansar o dia e sonhar a noite. Antes de a exaustão fechar meus olhos, ficava olhando o firmamento com miríades de estrelas faiscando sua presença iridescente, naquele momento de negritude pura, sem nenhuma mácula comportamental. Por sobre nós e ao alcance da mão, pululavam alegres os pirilampos em busca de algum alimento, ou apenas dançando seu ritual de acasalamento.
Ficava imaginando quando a fortuna me alcançasse, com toda sua exuberância e plenitude do poder, regalando-me permissão para desfrutar de tudo aquilo que muitas vezes sonhei possuir, mas que não via meios de alcançar. Agora não! Estava a poucos dias de distância para alcançar o leito do rio que guardava para mim o momento mágico da garimpagem. Que maravilha! Todas as minhas vontades seriam concretizadas. Primeiro, um magnifico banho de loja; depois, viagens, bons restaurantes, excelentes hotéis, praias de mares distantes e exóticos, onde as mulheres, sem pejo desfilavam seus seios entumecidos. Uma "louge-chair” esparramada na areia, uma garçonete servindo-me uma "margarita" e uma massagista besuntando-me óleo protetor. Um verdadeiro “Paxá” nordestino.
Esses pensamentos e mais o balanço suave da canoa, embalaram minha primeira noite naquelas paragens tropicais. Dormi o sono profundo da consciência serenada pelo cansaço. Levantavamos antes de o dia acordar, antes do sol se mostrar, e incontinenti, mãos a obra. Vamos remar e remar, o café da manhã só quando o dia estivesse claro. O dejejum era café com leite e açúcar. A baixela de prata ainda não havia sido comprada, muito menos contratada uma vestal para reverenciar aqueles dois Apolos purificados pelo destemor.
Nosso bule era uma cambona. Este tipo de bule é uma lata de óleo vazia, ou de qualquer outra conserva, com a tampa dobrada duas vezes servindo de asa. No Rio Grande do Sul, este artefato é chamado de "cambona". O pó do café decantava, jogando-se dentro do recipiente um tição em brasa. Se viesse algum resquício de pó para nossa boca, ali mesmo nós o filtrávamos. Pão, nem pensar! O deleite era um pedaço de rapadura e um punhado de farinha de mandioca. Depois um gole bem quentinho, e vamos remar novamente. O estômago serenado, a mente limpa e a onça distante, (que onça? Em Roraima elas são raríssimas) o que mais queríamos, além da força nos braços e uma canoa deslizando sobre a correnteza.
No segundo dia, na parte da tarde, começamos a encontrar pequenas corredeiras. As duas primeiras, conseguimos atravessar na base do "muque". Uma dificuldade terrível e o perigo adiante vencido pelo destemor da pouca idade. Éramos invencíveis. Distinguimos uma curva eivada de pedras, formando sulcos e produzindo uma espuma esbranquiçada. Não era "chope" gelado, mas bem que merecíamos. A cautela, o medo mesmo, nos levou para a margem onde descarregamos a pequena embarcação. Levamos nas costas toda a carga, atolando pés na areia fofa, e em seguida, a canoa. Carregando-a no lombo esfolado, tivemos que descansar de quatro a cinco vezes. Era uma distância razoável. Acima da corredeira depois de tudo novamente colocado no barco, tomamos um merecido banho relaxante. Ao cair da tarde enxergamos outra corredeira, de porte médio. Estávamos "escabreados" com o que havíamos sofrido algumas horas antes. Sugeri passarmos a noite ali mesmo, e no dia seguinte, após um exame cuidadoso e metódico, tomaríamos uma decisão sóbria, Meu argumento não calou na cabeça de meu companheiro, que tinha pressa de ficar rico.
–Dá para passar, dizia ele.
O meu medo gritava:
– não dá, não!—
–Dá sim; vamos em frente, ainda está multo longe do nosso ponto de trabalho. Se pararmos hoje, não chegamos amanhã.
Eu dizia:
–Rapaz! Antes tarde do que nunca!
–Se você quiser desembarque que eu vou sozinho e lhe apanho do outro lado, dizia ele. Meu orgulho falou mais alto e topei a parada, além do que eu tinha medo que ele me deixasse sozinho naquele mundão de Deus, sem ter a quem recorrer. A esta altura, nossos "Anjos da Guarda" já haviam se mandado. Certamente estavam lá de cima, olhando o que iria acontecer. Com o peito explodindo, os braços retesados, os olhos atentos procurando passagens escondidas entre as pedras cobertas por uma cortina d’água espumosa, foi exigida toda nossa força muscular, e uma vontade visceral para vencer a correnteza forte de uma corredeira. Com aquela vontade indômita de vitória, percorremos alguns metros sobre o lajeado submerso, até que a proa topou numa rocha escondida pelas marolas e ficou presa. Nem pra cima, nem pra baixo. Com meu último alento, consegui levantar o bico da canoa. Eu havia decido e com as duas mãos empurrava para um dos lados. Ela cedeu e aos pouquinhos foi ganhando velocidade rio abaixo, como se eu tivesse engatado uma marcha a ré. O cearense gritava:
–Segura pelo bico da canoa, não deixa descer.
Eu não sabia o que fazer, como fazer, irresoluto. Fiquei ali, parado, desolado e revoltado, olhando nossas esperanças descendo no aguaceiro descontrolado, ainda que o cearense tentasse, com o remo, dar ordem naquela carreira desenfreada; o homem forte não conseguia deter o bote carregado, cujo timão estava, agora, nas mãos de Deus. Ele entrou em desespero e continuou dentro daquela casca de ovo, tentando uma solução menos catastrófica. Escutei o barulho, que para mim pareceu um verdadeiro estrondo demolidor; a canoa batia numa pedra e era empurrada para outra que a mastigava sem piedade. De relance pareceu-me ver o homem sendo atirado distante nas águas turbulentas. A correnteza havia vencido a teimosia. Uma fúria assassina tomou conta daquele pedaço de rio. Do meu posto de observação fiquei olhando a canoa se desfazer em tábuas, depois em pequenos pedaços de madeira; imprestável para qualquer coisa, a não ser para rodopiar louca, suas pequenas lascas, naquele mar bravio de água doce. Nossos sonhos, nossa aventura, nossa riqueza, as praias tropicais, os hotéis de luxo, tudo estava soçobrando, mergulhando no poço da desesperança. Da "margarita" só sobrou um triste adeus. Os sacos com víveres começaram a ser jogados em cima de pedras pontiagudas, sendo ceifadas como se um corpo inerte fosse entregue a uma equipe de cirurgiões, com seus bisturis em riste, só aguardando o momento propicio de proferir suas incisões naqueles elementos rústicos, abrindo feridas irreconhecíveis. O conteúdo que teria sido nosso alimento, naquele momento estava engordando os peixinhos, que brincavam e sorriam diante de tanta fartura. Foi um verdadeiro banquete para aquele cardume. Foi um momento de luto para dois garimpeiros frustrados, desolados e dentro da mesma pobreza do inicio da aventura destruída pela pressa. As lágrimas misturadas ao barrufo das águas, não permitia que as caras de dois homens maduros, mostrassem a "vergonha" do fracasso. Caminhando sobre um lajeado e dando algumas braçadas, com os ombros pesados de desilusão, e com a ira da indignidade do momento, chegamos à margem, cansados, exauridos, decepcionados, pobres... A morte da canoa cristalizou o sofrimento em meu rosto de olhos opacos.
Atingida a margem, ali mesmo arriamos sobre a areia, e dormimos o desdouro do fracasso, sem casaco velho e macio, sem comida no estômago, sem vontade, sem brilhantes e sem perspectiva. O sono da desesperança não refez minhas forças. Consegui salvar o revolver, porque estava preso à cintura, e ele facão, que apanhou no último momento de lucidez e desespero. Quase noite ainda do dia seguinte começamos a caminhar a peregrinação de volta à civilização, carregando uma grande decepção pelo fiasco da nossa empreitada. Voltamos ao jugo da vida urbana. Caminhamos por dois dias e meio.
No caminhão da carona, explicamos que não havíamos encontrado nada, pois que a fúria incontrolável do rio havia tragado tudo que tínhamos, incluindo nossas esperanças de um futuro brilhante.
Ainda me lembro das duas manhãs em que acordamos sob a caricia do orvalho espiralando céu abaixo, deixando-nos jubilantes de alegria, com a nossa inserção ativa na natureza; formávamos um só quadro na aquarela do tempo. Víamos as folhas dos arbustos penduradas dos galhos com o peso do sereno noturno, parecendo estalactites brilhando ao sol, cheias de cores, como um prisma multicolorido. Não posso negar que ainda hoje tenho guardado em meu coração o sabor agridoce da aventura malfadada. Não consegui o que desejava, mas tentei com brio e valor. Valeu!...
Hoje com a lucidez da velhice, percebo que se tivéssemos logrado nosso intento de chegar ao local do garimpo, eu não saberia distinguir na bateia, o cascalho do brilhante...
Sou daltônico...
Anchieta Antunes.
Gravatá – 27-04-08