Autor português, Miguel Torga, é homenageado em literatura brasileira
Por Shirley M. Cavalcante ( SMC)
Sandra Regina de Farias graduou-se em Letras. Apaixonada pela história de Portugal, cursou o Mestrado e o Doutorado em literatura portuguesa, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de janeiro, PUC- Rio.
Ainda em suas primeiras aulas no Mestrado, a professora Cleonice Berardinelli apresentou-lhe a obra de Miguel Torga. Foi amor à primeira vista. Aceitou o convite do autor, entrou em sua Arca de Noé, e seguiu adiante. Torga sempre esteve presente, em seu coração, como um farol a guiar o caminho, a conduzir o fio. Hoje, tem o orgulho de publicar o livro “ Arca de Noé: De volta para casa”.
Em sua jornada profissional, atuou como Coordenadora do Curso de Letras em algumas das mais renomadas instituições de Ensino Superior do Estado Rio de Janeiro, dentre elas, a Universidade Salgado de Oliveira, o Centro Universitário da Cidade – UniverCidade-, e a Universidade Gama Filho. Exerce há mais de vinte anos o magistério. Atualmente integra o corpo docente da Associação Carioca de Ensino Superior, Unicarioca.
“Elas comungam o fato de serem senhoras de si e de seu destino. São mulheres simples, com uma rica vida interior. São mulheres fortes que trazem no corpo a marca da terra. Mulheres sem maquiagem, donas de um comportamento ético absoluto, balizado pela generosidade e pela grandeza de alma. Torga nos deixa um caminho para o essencial empodaramento feminino.”
Boa leitura!
Escritora Sandra Regina de Farias, é um prazer contarmos com a sua participação na revista Divulga Escritor. Conte-nos, o que a motivou a escrever “ Arca de Noé : De volta para casa”?
Sandra Farias - O que me motivou a escrever este livro foi o desejo de compartilhar o que “eu vejo”, como leitora, em Miguel Torga. Para mim, a obra de Torga precisa ser relida com urgência no século XXI. O seu texto é precioso porque aponta caminhos essenciais para homem do agora. Torga sonhou a Montanha. E sonhar a Montanha, que é um ambiente sólido e rústico, é um convite a uma reflexão profunda sobre a realidade. Vivemos numa temporalidade complexa, marcada por relações dissolventes. O mundo contemporâneo está se dissolvendo, mergulhado na busca incessante da rapidez. Tudo é rápido, fugaz e superficial. O dilúvio está ai... E Torga é um escritor visionário que constrói uma Arca de Noé, convergindo, pelo procedimento textual da interioridade, para muito além do espaço geográfico em que se situa e para além do seu tempo. Torga nos convida ao silêncio e a simplicidade... ao que é permanente e verdadeiro em nós mesmos...ao enraizamento. É hora de nos voltarmos para o nosso interior, para a terra, e procurarmos as nossas raízes.
Em que momento começou sua admiração pelo autor Miguel Torga?
Sandra Farias - A minha admiração por Miguel Torga começou ainda quando fazia o meu Mestrado em Literatura Portuguesa, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ( PUC-RIO). Nas aulas da Professora Cleonice Berardinelli, me apaixonei pelo mundo criado por Torga. Mas o ponto crucial, para mim, foi quando descobri, em pesquisa, que o Livro “ Bichos” transcendia a aparente simplicidade apresentada em cada conto. O que me despertou a curiosidade foi que em Bichos são apresentadas catorze histórias. E catorze também são as regiões visitadas pelo autor em sua peregrinação por Portugal – uma Via-Sacra que reedita na literatura as catorze estações de uma paixão humana pela terra portuguesa. A Via-Sacra, ao que deixam ver as filigranas textuais, é por terra e Torga é essa “nau” – “Arca de Noé” que reintegra, no espaço literário, o homem ao “aconchego da origem”. Nosso objetivo, então, foi a averiguação de possíveis correlações que se estabeleçam entre as regiões portuguesas descritas em Portugal, livro de Viagem, e Bichos, livro de contos. Na verdade, um livro movimenta o outro, um deseja o outro, no sentido da estética deleuziana; o que torna a escritura de Torga complexa , singular e contemporânea. E, além disso, vamos encontrar indícios da Arca de Noé em todos os livros de Torga; o que nos leva a crer que a Arca é o Leitmotiv da obra. Através do imaginário da Arca este escritor aponta um caminho para a pátria portuguesa, e também sugere a imperiosidade de uma tomada de consciência para a humanidade. Pensar a Arca é mergulhar no que há de mais visceral no nosso processo de autoconhecimento. O que pode nos salvar é a busca de nós mesmos e da nossa origem. E isso exige a vontade da investigação, da verdade, da lealdade, do amor a nós mesmos e ao próximo e à natureza. Valores éticos.
Apresente-nos a obra (sinopse)
Sandra Farias - O livro “ Arca de Noé : De volta para casa” é um estudo da obra de Miguel Torga. Pesquisamos os livros “Bichos”, “ Portugal”, “ Contos da Montanha”, “ Novos Contos da Montanha”, “Vindima”. E trechos da “ Criação do Mundo” e de alguns “Diários”. Nos textos de Torga, três unidades de sentido interagem e convergem para uma única entidade discursiva: o fascínio pela terra (discurso mítico), o desejo da liberdade (discurso sociológico) e o sentido da transcendência (discurso contra-teológico). Para organizar a análise, na primeira etapa do nosso livro, focalizamos a entidade mítica. A segunda etapa permite que se vislumbre a entidade sociológica. A terceira etapa aborda questões pertinentes à influência existencialista na obra e ao conflito com Deus. Mas estas três componentes discursivas atuam em conjunto, constituindo, em cada conto, um mesmo quadro, numa única realidade. Uma componente não pode ser entendida sem a outra. O nosso objetivo é que o leitor encontre no livro “ Arca de Noé : De volta para casa” uma leitura que facilite a compreensão da obra de Miguel Torga. Numa linguagem leve, simples e acessível é indicado para alunos ingressantes no Curso de Letras, para estudantes de outros cursos e também para todas as pessoas que estão à procura de si mesmas... “de volta para casa”.
O que mais chamou a sua atenção enquanto escrevia o livro?
Sandra Farias - O olhar da criança. Em Torga, o olhar da criança é o lugar onde tudo recomeça. Em Jesus, por exemplo, conto de Bichos, é a criança- um menino campesino chamado Jesus- que, em meio ao sofrimento e a aridez da terra, surpreende os pais, cansados, dizendo que “ sabe um ninho”. Ele descobre, no topo de uma árvore, um ninho de pintassilgo e retira de lá um ovo. O ninho é o espetáculo do renascimento. É da experiência de saber o ninho que a nova vida brota. “ Saber o ninho” é um ato da “vontade”, mas da “vontade” una e indizível de quem cumpre a sua Via-Sacra, mantendo o olhar da criança.
Mas enquanto escrevia o livro, descobri também algo muito instigante: o empoderamento da Mulher em Torga. Há uma tríade de mulheres na obra deste escritor que nos encanta: Madalena, Maria Lionça e Mariana. Elas comungam o fato de serem senhoras de si e de seu destino. São mulheres simples, com uma rica vida interior. São mulheres fortes que trazem no corpo a marca da terra. Mulheres sem maquiagem, donas de um comportamento ético absoluto, balizado pela generosidade e pela grandeza de alma. Torga nos deixa um caminho para o essencial empodaramento feminino.
O que o leitor pode esperar ao ler “ Arca de Noé: De volta para casa”?
Sandra Farias - O livro “ Arca de Noé: De volta para casa” pretende aprofundar e atualizar a leitura da obra de Miguel Torga, por consideramos a reflexão sobre os seus textos de extrema relevância na época contemporânea. Tencionamos mostrar que a simplicidade do mundo criado por Torga, o seu universo ficcional, indica a necessidade de nos voltarmos, no agora, para o simples da existência. Uma existência que só faz sentido na verdade de uma vida pautada em valores éticos sólidos, que não se deixa quebrantar por imagens forjadas e mascaramentos sociais e políticos que dissolvem as relações humanas, tornando-as líquidas. Uma vida ética que só é possível pela consciência plena do si mesmo, pelo respeito ao outro, pelo respeito à natureza, pelo respeito à terra e à cosmogonia. Torga fez a si mesmo um geógrafo. Ele percorreu terras, e não apenas falou sobre elas. Os seus textos são o retrato da lealdade das suas vivências como homem, cidadão português, escritor e médico. Ele investigou a cultura de seu povo, visitou lugares, viveu o processo de conhecimento na sua própria carne. E as suas personagens, bichos e homens e mulheres campesinos, de pouca fala, apontam, ainda, para a necessidade absoluta do silêncio, em tempos em que as palavras estão se esvaindo, palavras gastas em terras emersas, perdidas no barulho da contemporaneidade.
Resuma o livro em duas palavras
Sandra Farias - Consciência e Humanidade.
Onde podemos comprar o livro?
Sandra Farias - O livro está à venda no site da Editora Chiado Books (www.chiadobooks.com) e nas grandes livrarias de Portugal e do Brasil.
Seu foco de estudo é a literatura portuguesa. O que, até então, em sua opinião, a diferencia da literatura brasileira?
Sandra Farias - A literatura é a expressão humana e cultural de um povo. O texto literário reflete o modo de ver e sentir do homem em determinado momento da sua historicidade, apontando para a sua futuridade. Ora, a história de Portugal é comovente. E é comovente porque o homem português apostou na grandeza de seu futuro. Destemidamente arriscou-se, embalado em seu sonho narcisista de conquistas. Embarcou para terras estrangeiras e estranhas. Viajou, descobriu mundos novos... Acertou muitas vezes e errou outras tantas. Mas teve a coragem de se olhar no espelho e voltar para casa. De mergulhar em suas próprias entranhas e refazer os seus caminhos. Perdeu a si mesmo... para se encontrar logo ali. A literatura portuguesa é fundada num processo apaixonante de autognose. Da procura da pérola escondida dentro da ostra... na profundidade das águas do rio Tejo. Sobre essa literatura, Torga tem uma fala muito interessante. O escritor nos deixa a seguinte lição amorosa e passional: “Temos de conhecer a nossa terra. Mas conhecê-la por dentro, sem preocupações históricas, arqueológicas, políticas ou outras. Conhecê-la como se conhece a mulher que se ama, com quem se dorme e com quem se repartem as alegrias e as tristezas. Saber como são diferentes as suas feições em cada fase do ano, e em cada momento de ternura e de raiva. Ver-lhe a nudez do corpo quando se despe sequiosa de amor, e olhá-la coberta dos lutos da viuvez. Ser por ela quando o merece, dando-lhes todos os carinhos humanos, e ser contra ela quando é preciso dizer-lhes verdades duras.”
O que as aproxima?
Sandra Farias - Eu diria que o sentido da humanidade é o que nos aproxima. O homem escreve para compreender a si mesmo enquanto ente humano. Escreve, num determinado tempo e espaço da sua existência, escreve a sua pátria, os seus caminhos e descaminhos, as suas dores, os seus anseios, os seus amores.... Escreve a sua história para permanecer no mundo, porque se quer perene. A ideia de perenidade remete à universalidade do texto literário. Somos todos diferentes, mas somos todos iguais porque somos homens e mulheres em busca da nossa terra prometida. E a literatura, de certa forma, é essa terra prometida. Através do texto literário, somos conduzidos, pela força da palavra poética, ao mais profundo de nós mesmos, ampliamos a nossa consciência da realidade e realizamos novas conexões, nos apoderamos das nossas palavras, da nossa verdadeira face, e, somente então, nos “empoderamos” enquanto sujeitos. Nesse sentido, a literatura tem a missão ser um farol a iluminar o caminhar do homem em sua aventura de viver...na sua trajetória pessoal e coletiva.
Pois bem, estamos chegando ao fim da entrevista. Muito bom conhecer melhor a escritora Sandra Regina de Farias. Agradecemos sua participação na Revista Divulga Escritor. Que mensagem você deixa para nossos leitores?
Sandra Farias - Revisitar a dinâmica da obra de Miguel Torga, em tempos Pós-Modernos, em que o homem está se diluindo em relações aparentes e virtuais, horizontais e líquidas, nos move novamente para o espaço e tempo de meditação propostos no movimento ético da Arca rumo, quem sabe, a solidez de uma terra absolutamente humana, fértil de intimidade e prenhe do verdadeiro sentido da vida. Desejo que o Livro “ Arca de Noé : De volta para casa” seja um convite à releitura da obra de Torga e que possa prestar a sua contribuição, sendo também uma singela homenagem a este consagrado escritor da Literatura Portuguesa.
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