TURBILHÃO
Não custa registrar as inquietações do cotidiano. Escrever no papel aborrecimentos ocorridos nos lares, no trabalho ou na esquina. Insistir na escrita de uma mágoa recente ou antiga. Adotar os conflitos, escrevendo desenfreadamente todos os anseios. Despejar para o mundo isso ou aquilo, sem contudo, criar alarde. Em seguida, guardar as páginas, deixando-as de molho, amadurecendo toda a amargura.
Melhor registrar os pensamentos inquietantes do que expor para alguém insensível, ser julgado e mal compreendido. Explorando a caneta, monstros internos serão confrontados, acertos e erros confirmados sem a necessidade de olhares gulosos. Não existe censura ou preconceito diante de palavras escritas no momento de solidão, mas instantes de sigilo, e somente você tem o poder de revelá-los.
Sobretudo porque uma folha em branco não possui sentidos: olhos para acusá-lo ou boca para despejar opiniões. Simplesmente, uma folha neutra, alva, pidona, faminta, sedenta de meros rabiscos. Basta riscar a primeira frase, e um turbilhão de ideias criam formas, aliviando a alma, tornando-se tão eficazes quanto uma consulta com um terapeuta.
E quando mais tarde observar a pilha de desabafos acumulados no furor do momento, questionará se era de fato o protagonista daquele cenário – um cenário de pensamentos gigantes. Quem derramava conflitos por determinada situação? Ignorava as evidencias de um cenário artificial? Permitiu ser podado de toda autenticidade? Tantas lágrimas extravasadas! Foram mesmo necessárias ou em vão?
Relendo os seus inscritos, chegará a conclusão de que os fatos foram muitas vezes confusos, egoístas, sonhadores, e que um terço do seu desgaste emocional ocupou espaço demasiado.
Registre, rabisque. Inunda folhas de conflitos até a última linha. Sinta-se à vontade para diminuir todo o excesso de bagagem. Compare tudo o que escreveu e perceba o quanto se afogou na tempestade.
Finalmente, faça um brinde, e chore. Lave os olhos com as próprias lágrimas, limpando o cisco que estava obstruindo a sua visão.
E somente quando a sua visão estiver límpida e seu âmago livre, liberte-se de tudo o que registrou.
publicado em 25/05/2014