UM FURO NA PAREDE
(versão sonâmbula)
Tarde arrastada de domingo, nada pra fazer, nem chuva, nem sol, tempo fresco, sofá confortável, televisão desligada (a bem do conforto), celular no fundo do bolso de alguma calça, mulher e filhos no shopping, quietude absoluta, aquela imensa parede branca diante de si.
E o furo no meio da parede.
No meio, não exatamente. A bem da verdade, na parte superior da parede, um pouco mais à direita do que à esquerda. Está no meio, isso sim, do olhar. Desse olhar preguiçoso, que se digladia com a mente, desejosa às vezes de impor que os olhos vejam mais do que podem ou do que seria natural.
O tal furo pode até não estar ali de verdade. Simples projeto da intenção de fixar um quadro que decore o local. Que quadro? Paisagístico? Abstrato? Se a preguiça dominical nem deixa o corpo erguer-se para confirmar a existência do orifício visto ou imaginado, tampouco favorece a escolha da decoração. Faria falta consultar a patroa. Se é que ela já não se manifestou. Onde andará a memória nessa tarde?
Por um furo passa água. Escorre de leve pelo muro, repentinamente jorra aos borbotões. Linda cascata! Em plena sala de estar, trazendo a Natureza e seu frescor ao ambiente. Como é gostoso mergulhar os pés naquela água cristalina, onde se veem peixes a nadar entre as pernas do tipo sonolento e os pés dos móveis. Os filhos iam gostar de nadar ali. Haveria profundidade? Talvez. De qualquer modo, os jovens sabem virar-se com o que encontram.
Mergulhar seria demasiado, porém. Falta profundidade nessas águas e na mente que as projeta, por isso são cristalinas. O superficial forja a cristalinidade das águas e do pensamento, facilitando a vida e o poder de decisão do tipo sonâmbulo que tateia feliz por paragens tão amenas, aparentemente.
Cuidado! Águas que provêm de um furo podem ocultar buracos e fossos onde caem os incautos de domingo. O cara acredita que está seguro, em suas divagações, confundindo-as com o raciocínio efetivo que conduz à sábia conclusão. Nem sempre dois e dois somam o que parece óbvio. Há um furo, na parede e em tudo mais...
Do orifício flui, agora, a mulher dos sonhos. Linda, cativante, verdadeira sereia a combinar com a mansidão das águas e a despertar ardente paixão. Quem será essa mulher? Ora faz lembrar a esposa, mais jovem, mais atraente, ora provoca a angústia imensa de querer e não conseguir identificar alguém.
O tipo se remexe no sofá, estende os braços, tateia na ânsia de tocar a mulher, identifica-la, ganhar seu carinho, perder-se de amor. Esforço inútil! A vida é complexa, não basta um simples furo na parede de casa para conduzir o espírito à profundidade da paz.
Eis que o orifício se alarga, vira túnel por onde milhares de pessoas entram de montão sem demonstrar o mínimo interesse pelo homem aturdido em seu sofá. Algumas caminham a passos lentos, outras quase correm e muitas, quem sabe preguiçosas como ele, vão de carro, ônibus, trens e aviões. Com seus pouco mais de quarenta anos, o pobre tipo pretensamente pensava haver visto de tudo. A multidão de gente e de humores está aí para abalar suas convicções.
Ele quer manter-se na superfície, tolo mortal! Teme ingressar no túnel, sente receio de gente desconhecida. Por segundos reflete que, mesmo entre seus “conhecidos”, existem os que provocam temor, geram dúvidas.
Tateia novamente, como em busca da segurança perdida, das águas tranquilas que escoaram pelo ralo. Ou pelo furo.
Não conseguindo atrai-lo, o túnel move-se da parede e transforma-se em cratera no chão da sala, onde tudo se precipita com rapidez ainda maior. O meditabundo sonolento sente falta de ar. Quer gritar, chamar o vizinho, a mulher, os filhos, a polícia, até mesmo o ladrão. Quem quer que pudesse ouvi-lo, no entanto, já deve ter caído na cratera. Ele permanece à borda do precipício, sem atentar no que fazer.
Olha a parede. Ao contrário do que esperava, sua superfície não está lisa. Onde havia um furo, agora existem vários, maiores e menores, de orifícios perfeitos a perfurações irregulares, verdadeiras rachaduras e brechas grotescas, a sugerir que o lar pode desmoronar.
Atônito com esse cenário mutante, nada resta ao quarentão senão fechar os olhos, se é que estavam de fato abertos. Fica só a ouvir o vozerio que dá lugar a meros murmúrios, bem como os sons diversos que ainda emanam da cratera, mas diluem-se pouco a pouco.
Suas mãos tateiam por hábito e encontram o interruptor de luz. Já se faz noite. A família não tarda a chegar do shopping.
Procura o periódico que deixou cair no chão. Lê os artigos que faltavam. Nenhum furo jornalístico, pelo que lhe é dado perceber. Tudo velho como as tardes de domingo. A maior parte delas, para não cometer injustiça.
O furo permanece na parede, sem explicação convincente.
Setembro 2019.
Leia também a versão desperta deste conto.
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