Uma cidade e uma borboleta - por Maria Dilmar

Uma cidade e uma borboleta - por Maria Dilmar

Uma cidade e uma borboleta

 

Uma cidade pequena. Um tempo onde o preconceito era apenas uma questão de saúde social. Aquela mesmice! As tardes mornas. Uma ou outra pessoa seguindo na direção da igreja. A praça deserta.  Movimento de pessoas só nos fins de semana. Nos outros dias era aquele vazio intolerável. A não ser num momento como aquele. A cidade toda acordada e um comentário só. Sim ele o pobre coitado! Foi encontrado com metade do corpo debruçado sobre a cacimba. Logo ele! Quem será que fez uma coisa desta? Como pode! Ele gostava de cantar e o fazia com uma leveza! Todos caçoavam dele e quem disse que ele se importava! Ou será que se importava. Aquele corpo másculo, aquele rosto lindo e aquela alma delicada de sorriso tão feminino!

Desde muito cedo já se percebia os trejeitos e as caras e bocas dele. A família fingia não perceber até porque ele era o faz tudo. Cozinhava muito bem e sabia valorizar seu serviço. Arrumava uma casa com perfeição e era exigente! Era a alegria ambulante. Vivia sorrindo e cantando. “Será que eu sou feia? Não é não senhor. Então eu sou linda, você é um amor...” E nessa hora o olhar era malicioso e penetrante. Foi a primeira vez que vi alguém usar um avental com elegância. Era esmerado na cozinha e os pratos eram caprichados e bem decorados.

Fazia tudo tão bem! Mas seu mundo era da porta da cozinha para trás. Não lhe era permitido frequentar a sala das festas que organizava. Sabia-se da sua existência, mas jamais alguém do sexo masculino lhe dirigia a palavra em público. No entanto irradiava felicidade e fazia questão de falar sobre ela e seu amor misterioso.

A cidade o ignorava, mas ele sobrevivia sem queixas.  Era o principal confidente das solitárias madames que mandavam açoitar as amantes dos maridos enquanto se empanturravam com as guloseimas deliciosas que só ele sabia fazer.

Era um jogo de ilusões. Uma cidade pequena encravada no alto sertão nordestino. Uma sociedade de bravatas com conceitos ultrapassados e acobertados pela subserviência da ignorância. Apenas ele destoava daquele cenário medieval. Com calças estampadas pouco comum em um homem e aquele andar provocante e lascivo, fazia com que as calçadas parecessem passarelas e o céu e as nuvens se transformassem em luzes para aquele andar triunfante e enigmático.

Agora a cidade questionava a sua perda. Não a sua ausência, mas o mistério da sua morte e as duas letras rabiscadas na areia ao lado da cacimba. Havia um burburinho na cidade e o desespero da família. Será que ele ia poder ter seu corpo velado na igreja?  Será que as pessoas o acompanhariam até o cemitério? Será que sentiriam saudade? E sua voz?  Será que ele cantou para se despedir? Aquela cidade naquele dia perdera muito da sua claridade e aquele que o silenciou perdeu para sempre sua alma.  Nunca mais teve sossego por causa das duas letras rabiscadas na areia. Ninguém nunca foi preso. Só ele, Antônio Cacheado se libertou do casulo e virou definitivamente uma borboleta.

 

 

 

 

 

 

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