UMA CRÔNICA DE PÁSCOA: FERIADO, ALELUIA, CHOCOLATE!
“Mãe, por que esse feriado que a gente come ovo de páscoa se chama semana santa se só dura três dias?“
O sinal abriu para os pedestres e a moça alta e esbelta carregada de sacolas da sofisticada loja de chocolate seguiu segurando firme a mão do pequeno ruivinho de cabelos encaracolados, enquanto eu permaneci parada, pensando que eu jamais tivera esta dúvida.
As “minhas semanas santas” da infância começavam no Domingo de Ramos e se estendiam até o dia da Páscoa. Nesse período, o enorme ovo de páscoa de papel brilhante e colorido, que meu pai saía escondido de nós para comprar, ficava exposto no centro de mesa da sala de jantar. Naquela época não havia tantas opções de sabores e marcas, mas ele sempre dava um jeito de se superar e a cada ano encontrava um mais bonito e mais gostoso que o outro. Ninguém se atrevia a tocar naquela belezoca que ficava ali, se exibindo, tentando nosso olhar, atiçando nosso paladar e nós não víamos a hora de terminar a missa da manhã do Domingo da ressurreição de Cristo para voltarmos para casa e nos dedicarmos a deliciosa tarefa de devorá-lo com sofreguidão.
Hoje eu tenho acesso aos melhores chocolates desse planeta, mas nem o fabricante suíço, belga ou francês, requintado, seleto ou caríssimo, consegue reproduzir o sabor dos ovos que meu pai dava um duro danado para adquirir e nos surpreender.
Semana Santa em família cristã de tradição portuguesa era cercada por rituais litúrgicos e festividades religiosas. Tenho lembranças memoráveis das encenações amadoras que a comunidade da paróquia local preparava com fé, criatividade e parcos recursos.
O Domingo de Ramos abria as solenidades e começava bem cedo, relembrando a entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Cada fiel comparecia num ponto de encontro afastado de onde seria realizada a missa, portando um ramo de palmeira para ser benta pelo padre. Alguns chegavam com verdadeiras touceiras de folhagem, outros traziam um raminho esmirrado. Tinha quem lustrasse o ramo com algum tipo de óleo para se destacar e quem não conseguisse uma folhinha de palmeira, roubava um galinho qualquer da árvore do vizinho e, consciência limpa, se dirigia para a benzeção. Não lembro quantos anos eu tinha quando meu pai, frequentador assíduo da igreja e amigo do clero paroquial, chegou com a novidade de que nossa casa seria palco da cerimônia de onde partiria a procissão. Posição privilegiada, acima do nível da rua, o jardim se transformou num altar improvisado e do alto das grades de ferro que o contornavam, o pároco aspergia a água benta disputada pela pequena multidão na calçada.
Se você não conhece essa tradição deve estar se perguntando: e o que é feito depois com essas palhas bentas? Pois eu satisfaço sua curiosidade: os fiéis guardam-nas com cuidado e carinho para queimá-las num momento de grande aflição. Minha finada tia, que morria de medo de trovão, não passava um temporal sem queimar um pouco de palha benta. Entendeu por que algumas pessoas se municiavam de verdadeiros estoques de ramos?
Segunda e terça eram dias reservados aos preparativos das demais cerimônias. Grandiosas e trabalhosas demandavam metros e metros de tecido roxo que as mãos calejadas das costureiras conhecidas transformavam em toalhas e capas para cobrir os altares e os santos. Enfeites coloridos, flores e ornamentos eram suprimidos e seu lugar ocupado por demonstrações de sofrimento, tristeza e luto.
Na quarta-feira ocorria a “Procissão do Encontro”. Recebia este nome por ser o momento em que Nossa Senhora das Dores, a sofrida mãe de Jesus, saía de uma determinada Igreja, geralmente menor em tamanho e prestígio do que a paróquia, para encontrar-se com Nosso Senhor dos Passos, este já com a cruz sobre os ombros. Um drama emocionante, que costumava levar as mães presentes às lagrimas, talvez mais preocupadas com o futuro de seus próprios rebentos do que com o do protagonista, pois o final daquele história todo mundo conhecia.
Quinta-feira era o dia mais concorrido. Pela manhã batismos e crismas. Mães novatas disputavam a data com garra e quando vencedoras, extravasavam uma alegria tão genuína, que destoava do tom sorumbático exigido para a ocasião. À noite, a cerimônia do lava-pés acontecia entre asco e êxtase. Doze dos habituais homens frequentadores dos eventos católicos eram convidados a formar o grupo dos apóstolos que, devidamente trajados com roupas de época, teriam seus pés desnudados, lavados e beijados pelo padre ou pelo bispo de Diocese que se deslocava de longe para tanto. Envergonhados, tímidos, exibicionistas e piedosos sentavam-se lado a lado aguardando o momento em que suas famílias e seus convidados, mais parecendo torcida organizada do que fiéis devotos, pipocariam os flashes das máquinas fotográficas imortalizando seu momento glorioso. Um deles ali era Judas Iscariotes, o traidor. Quem? Ah! Isso ninguém queria saber.
Meu pai fez parte do grupo algumas vezes. A intimidade com os organizadores facilitavam sua escolha. Engraçado que eu não me lembro de assistir o lavar de seus pés, mas tenho vivo na memória, como se fosse ontem, seu sorriso gentil ao chegar a casa e entregar para minha mãe o presente recebido como “cachê”. Embalado em papel celofane o pacotinho continha uma pequena garrafa de vinho tinto e um rocambole desses industrializados. Talvez por isso eu tenha especial simpatia por aquela massa parecendo isopor, recheada por uma meleca colorida, ácida, artificial e considera essa uma prova irrefutável de que sabor, às vezes, tem muito mais ligação com a memória do que com as papilas gustativas.
O dia seguinte era o clímax do ambiente de consternação. O sofrimento atroz! A morte! Neste dia não se comia carne vermelha. Eu achava ótimo. Filha de gaúcho, carnívoro e que não gosta de carne vermelha, sofre viu? Daí, quando a carne tinha motivo justificado para sair do cardápio, nem que fosse por uma vez ao ano, era uma felicidade.
Na parte da tarde a congregação se reunia para ouvir os atos da Sexta da Paixão. Vários oradores. Um jogral religioso. Cada um lia a parte que lhe cabia como personagem. Difícil era conseguir o Pedro, porque diferente do anônimo Judas no lava-pés, nesta cerimônia o personagem de Pedro “dava as caras” e negava Jesus três vezes, em alto em bom som, para os constrangidos vizinhos, amigos e parentes. Um probleminha bobo e contornável, pois sempre havia alguém disposto a sacrificar sua reputação pessoal em troca do prazer de ver cumprido o ritual em sua integralidade.
Às três da tarde em ponto, Jesus morto, um silêncio tumular se instalava no recinto. Em seguida, numa fila sem fim, que prosseguia até o final da noite, as pessoas prestavam homenagem beijando a testa do “Senhor morto”, uma impressionante imagem de Cristo com olhos fechados, deitado num caixão. As senhoras da paróquia revezavam-se sentadas ao lado do féretro, passando lencinhos umedecidos com álcool na testa da imagem a cada beijo mais efusivo do que aqueles apenas simulados. Apesar de todo esse desalento coletivo, por vezes ocorria um certo “furdunço” quando um fiel menos fiel resolvia “furar a fila” para o beijo. Nem a morte de Cristo, nem seu corpo presente, nem as senhorinhas circunspectas continham a falta de educação desses malandros metidos a espertinhos, que ao final eram expulsos pela turba enfurecida. Quer beijar? Entra na fila seu desgraçado, seu filho da mãe. Só não valia palavrão porque na Igreja não se falava palavrão. Pelo menos não naquela época.
Sábado de Aleluia! E o ovo lá, meio molengo pelo calor que teimava em continuar após o verão no subúrbio do Rio de Janeiro, mas inteiro, exalando um perfume mais imaginário do que real, que entrava pelas narinas, sem ligar para a farta embalagem dupla que separava nosso desejo do objeto do desejo. Na missa noturna acendia-se o Círio Pascal, uma vela grande, repleta de simbolismos incrustados, que seria usada ao longo do ano, nos batizados. Também era dia de vigília. A mais famosa da Igreja católica. Vigília Pascal! Véspera da ressurreição de Cristo e os cristãos permanecem acordados, orando, durante esta espera.
Para a garotada, entretanto, não importava nada disso. Sábado de Aleluia era dia de malhar Judas. Dentre os diversos candidatos ao cargo, sempre se escolhia uma fofoqueira famosa, uma moça de conduta duvidosa ou um bêbado conhecido no bairro e a moçada usando estopa, roupas velhas dos pais, maquiagem surrupiada da penteadeira da mãe e peruca que alguém conseguisse reproduzir com materiais descartados, materializava a pessoa..De madrugada, o mais ousado do grupo subia no poste, amarrava a criatura portando um cartaz nada elogioso e ao meio-dia dava-se início à total destruição do boneco-personagem achincalhado.
Finalmente chegava o Domingo de Páscoa. Ufa! Uma demora e tanto, mas compensada com a bacalhoada da minha mãe, que nem o melhor Chef da cozinha portuguesa consegue igualar. Uma quantidade absurda de azeite, batata e couve acompanhavam os filés que eram mergulhados em água gelada por dias seguidos, trocada a cada seis horas, com rigor britânico. O despertador da família era retirado da mesinha de cabeceira do casal e ficava na bancada da pia, de prontidão, avisando o momento da troca, ainda que no meio da noite. Valia a pena! A sobremesa, em geral, era um pudim de leite. Mas quem queria saber de doce? Ninguém aguentava mais comer chocolate ou bombom e mesmo assim, era comum a toalha do almoço ao ser colocada para lavar, apresentar algumas manchas marrons, além das amarelo-esverdeadas do óleo de oliva.
E o menino ruivinho que não sabe nada disso? Que jamais teve a oportunidade de esperar uma semana para se lambuzar de chocolate?
Com certeza ele não conhece o drama da Paixão de Cristo e todas essas minhas lembranças não devem passar de uma boa historinha para adormecer.
O fato é que não importa a religião, não importa se acreditemos ou não, se tenhamos sidos criados nessa tradição ou não, a ressurreição nos traz uma mensagem de vitória, de superação e de perseverança.
Páscoa é Esperança! E a esperança nos faz acreditar que tudo é possível, até quando tudo parece perdido ou inalcançável.